Crônica: Bem-aventurados os que estão fartos, porque terão fome de novo

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Bem-aventurados os que estão fartos,  porque terão fome de novo
O Pergaminho’ publica crô-nicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




 Duas tristezas. A primeira é não ter fome quando a comida está servida na mesa. O nome dessa tristeza é depressão. A segunda é ter fome quando não há comida na mesa. Isso não é depressão. É tristeza mesmo. Entre essas duas tristezas, a vida acontece. O encontro entre fome e comida tem o nome de alegria.

A fome é mágica. Ela tem o poder de dar sabor a qualquer comida. "A melhor comida é angu com fome", diz ao ditado popular. Um amigo meu, o aviãozinho em que ele viajava caiu nas matas da serra do mar. Ele e o companheiro ficaram perdidos por dois dias, sem comer. Quando encontraram uma tapera de gente paupérrima, a mulher lhes fez, para comer, a única coisa que tinha: fubá mexido e cozido com água, angu. Quando o angu ficou pronto, ele nem esperou pela colher: atacou o angu com as mãos. Nunca mais comeu coisa tão gostosa...

A vida começa com a fome. Para o nenezinho recém-nascido, que nada sabe, o mundo - mundo é tudo o que está fora do seu corpinho - é comida. O seio da mãe é o resumo do mundo. Quando a fome chega ele chora. O choro é a forma que o corpo tem de dizer que ele, corpo, não se basta: falta algo. Essa é a primeira lição de filosofia. Somos, fundamentalmente, não "pensamento", como pensava Descartes, mas fome. "Tenho fome, portanto sou". Daí a afirmação de Feuerbach, filósofo que pensava com o corpo e não com a cabeça: " O homem é aquilo que ele come".

A vida começa na boca. A vida começa no seio. A boca sugando o seio: essa é a primeira lição de erótica. Essa é a primeira maneira de fazer amor. Disse-me um pediatra que os gemidos que faz a criancinha ao mamar são idênticos aos gemidos dos amantes abraçados fazendo amor.

A vida é uma transformação da boca. Na criancinha, os sentidos estão adormecidos. eles estavam adormecidos, como a Bela. Acordados, todos eles vão se transformando em boca. Olho vira boca, ouvido vira boca, nariz vira boca, pele vira boca. Todos têm fome do mundo. Todos querem comer o mundo. Sobre isso os médicos, que se dizem conhecedores do corpo, nada sabem. Pensam que é só a boca que come. Os poetas sabem mais. Dizia Neruda: " Sou onívoro de sentimentos, de seres, de livros, de acontecimentos, de lutas. Comeria toda a terra. Beberia todo o mar."

A vida é uma transformação do seio. Na boca do nenezinho o seio só jorra leite. Mas, à medida que ele vai crescendo, o seio vai se transformando. Dele outras coisas começam a jorrar. Os gregos diziam que do seio jorram estrelas: a Via Látea nasceu de um esguicho de leite que saiu do seio de uma deusa. Mas do seio esguicham outras coisas: jardins, mares, rios, montanhas, nuvens, músicas, perfumes, toques, risos, rostos...

Se Deus não ficar bravo comigo proponho um acréscimo às palavras de Jesus, no "Sermão da Montanha", uma outra bem-aventurança. É sabido que Jesus disse: "Bem-aventurados os que têm fome porque serão fartos." Eu acrescentaria: "Bem-aventurados os que estão fartos porque eles terão fome de novo!" Pois poderá haver desgraça maior que deixar de ter fome? Estar farto, não ter mais fome é o tédio, o enfado, a impotência. Quem não tem fome está condenado a não ter alegria.

Todas essas coisas sobre a fome, eu as disse a propósito de um casal de amigos. Estão completando  50 anos de casados. Sobre eles já falei. O Jether é aquele que não teve coragem de comprar um blazer vermelho. Eu o vi comendo o blazer com os olhos. Era muito bonito. Mas algo o proibiu. Dieta. Naquele tempo ele era um adulto sério. Ficou com medo de que os outros achassem que um blazer vermelho era pimenta demais na comida de alguém da terceira idade.

Quem faz 50 anos de casado não pode ser muito  jovem. Mas os dois, Jether e Lucília, são o casal mais jovem que conheço. Vão pela vida afora como crianças numa loja de brinquedos: tudo os encanta, tudo provoca risos, tudo é motivo de brincadeira. Eles são jovens porque os dois foram abençoados por minha bem-aventurança: eles têm uma fome insaciável. A fome é o segredo da juventude.

Há muitos que completam 50 anos de casados por inércia. Perderam a fome, deixaram de ser crianças, ficaram velhos mesmo, e foram ficando rancorosos, amargos, ranzinzas, rabugentos, intolerantes, reclamões. Gostam mesmo é de falar sobre doença, tendo prazer especial em mútuas alfinetadas. De noite eles se assentam para ver televisão e não têm sobre que conversar. Aí, quando completam 50 anos de casados, fazem festa. Celebram o quê?

O Jether e a Lucília completam 50 anos de casados como dois namorados. "Namorados", na minha definição, são os amantes que ainda não ficaram sérios, que continuam crianças.

Vou contar uma molecagem do Jether, torcedor do Botafogo, como eu. Molecagem que teve a Lucília como cúmplice. Um filho deles, esposa e dois netos, meninos de 9 e 7 anos, foram morar na Inglaterra. A Lucília, cheia de saudades, ia visitá-los. Era o tempo de Copa do Mundo. Saiu a lista dos jogadores convocados para a seleção, página inteira do jornal. Na coluna esquerda, as fotos dos jogadores, uma debaixo da outra. Ao lado de cada foto, um comentário técnico sobre o craque. O Jether teve uma idéia marota, brincadeira com os netos. Cortou a foto de um jogador. No seu lugar colou sua própria foto, devidamente encolhida. A seguir, o comentário, algo mais ou menos assim: "Jether Pereira Ramalho, grande revelação do Botafogo. Dono de uma técnica impecável e de uma experiência única, vai ser o cérebro da seleção brasileira" : tudo em letras idênticas às do jornal. A seguir fez uma cópia xerox e pediu que a esposa levasse a dita folha para os netos. Foi o que ela fez, sem nenhum comentário. Os garotos ficaram excitadíssimos com as notícias sobre a Copa do Mundo. Começaram a ler até que chegaram à notícia insólita: "Nossa! O vovô! O vovô foi convocado para a seleção!" A avó engoliu o riso, se conteve. Mas aí um deles notou algo estranho: " Uê! Por que é que o vovô está de gravata e paletó?..."

Jether e Lucília não perdem cinema. Vêm todos os filmes bons que há para ver, especialmente os de arte. Foram eles que me aconselharam a ver "A lanterna vermelha". Foram eles que pela primeira vez me contaram sobre "A Festa de Babette". Não perdem concerto de música clássica, especialmente piano. E nem show de música popular. Adoram comer e beber. Lucília é uma maravilhosa Babette cujos olhos brilham ao ver um doce. Não perdem chances de viajar: a vida é curta, "tempus fugit", "carpe diem". Já viraram o mundo de cabeça para baixo, sem nunca perder tempo com compras em shopping-centers para exibir para os invejosos. Faz pouco tempo foram visitar os campos da tulipas na Holanda e as geleiras no sul do Chile onde tomaram uisque de 12 anos com gelo de geleira de 30.000 anos. Além disso, o Jether é companheiro de banhos de cachoeira e mergulhos em lagos de água gelada. E, ao mesmo tempo, estão comprometidos de corpo e alma com as lutas por um mundo melhor.

Partilhamos de uma mesma tradição, que amamos. Somos protestantes. Mas é dessa tradição que nos vem um arrependimento comum. Não por pecados que tenhamos cometido. Mas por pecados que deveríamos ter cometido. Em tempos passados aprendemos na igreja (nisso católicos e protestantes são iguais) que Deus fez a fome, Deus fez a comida, e Deus deu a proibição. Segundo a teologia clássica, Deus gosta mesmo é de jejum e de fazer a gente sofrer. Se não fosse assim, não teria feito nem a fome e nem a comida. Felizmente acordamos a tempo do nosso erro: Deus é a grande Babette universal. Quer mesmo é ver o sorriso de criança da gente diante do grande banquete que é o mundo. Temos só tristeza pelo tempo perdido. E juramos não mais perder tempo. Comeremos de tudo o que é bom e bonito com fome insaciável.

E agora eu rezo por vocês a reza da Adélia Prado: "Não quero faca nem queijo. Quero é fome!" Comer é bom, quando não se está sozinho. Felizes são vocês que sempre comeram juntos. Que a fome seja sua eterna companheira, até o fim. Para que vocês continuem crianças. Amém.