Crônica: Doenças e remédios
Rubem Alves (1933-2014)

Minhas netas: quando vocês estão com dor de cabeça vocês sabem que aspirina é o remédio. É uma tosse fraquinha? É só comprar um xarope na farmácia. A tosse não passa, está com febre? É melhor ir ao médico. Pode ser pneumonia. O médico examina, escuta os pulmões com um estetoscópio. Muitas palavras a gente usa sem saber o que significam. Estetoscópio é uma delas. Quem batizou esse instrumento, possivelmente o seu inventor, juntou duas palavras gregas: stethos, que quer dizer “peito”, e skopein, que quer dizer “ver, examinar”. Então estetoscópio é um instrumento que se usa para ouvir o que está dentro do peito.
Antes do estetoscópio o médico usava era mesmo o ouvido. Li, não sei onde, e nem sei se é verdade, que quem inventou o estetoscópio era um médico muito tímido que ficava vermelho de vergonha toda vez que tinha de encostar o seu ouvido no peito de uma mulher, especialmente se os seios dela eram grandes e ele tinha de usar suas mãos para afastá-los. Para se livrar desse embaraço ele passou a usar um canudo de papelão, e descobriu que assim se ouvia muito melhor. O resto foram melhorias... Pois o médico escuta os pulmões, diz que há um ronco estranho na base do pulmão esquerdo, pede uma radiografia para confirmar o que o ouvido ouviu.
Radiografia, como vocês sabem, é um tipo especial de fotografia. O aparelho de Raio-X, que faz a radiografia, é uma máquina fotográfica que fotografa aquilo que os olhos não veem, o que está dentro do corpo, usando raios que atravessam os músculos. O médico vê a fotografia dos pulmões, encontra uma mancha no lugar onde o estetoscópio havia detectado um ronco, e dá o diagnóstico, isto é, diz a sua conclusão. “É, você está com pneumonia. Tem de tomar um antibiótico.” A pessoa toma o antibiótico e fica boa. Nós procedemos assim porque confiamos nos remédios e nos médicos. Confiamos nos remédios porque eles são produzidos com os resultados da ciência. E confiamos nos médicos porque os seus saberes são os saberes da ciência. Não sabemos. Confiamos.
Mas lá na roça não havia remédios para se comprar porque não havia farmácias e nem médicos que identificassem a doença e conhecessem o remédio certo. Na roça a farmácia não era de comprimido, xarope e injeção. Na roça a farmácia crescia na horta: ervas medicinais. E cada pessoa tinha de saber transformar a erva em bebida. O processo era simples: tomavam-se as folhas e as colocavam em água fervente. Virava chá. Chá de guaco, chá de camomila, chá de hortelã, chá de folha de laranja, chá de funcho, chá de boldo, chá de carqueja, chá de losna... A lista não tem fim. E cada pessoa tinha de ser o médico: tinha de saber identificar as doenças: vento virado, espinhela caída, nó na tripa, estupor, dor de barriga, indigestão, caganeira, torcicolo, batedeira do coração, congestão, galo, queimação no estrambo, erisipela, furunco, cabeça de prego, barriga d’água, derrame, reumatismo, mal dos sete dias, picadura de cobra, picadura de aranha, picadura de escorpião, queimadura, espinho, hérnia, dor de cabeça, sangue pisado, corte, queimadura de taturana, coceira de urtiga, enjôo de estrambo, crupe, coqueluche, tétano, morróida, nervosia, perna quebrada, bicho-de-pé, berne, lumbriga...
Quem faz chás já sabe um pouco de química: sabe que água fervendo é solvente poderoso que pode extrair das folhas das plantas os seus líquidos curativos. O que me intriga é a história de como os homens descobriram as plantas que curam. Porque plantas, há aos milhares. Como é que eles ficaram sabendo que essa planta é boa para isso, aquela outra é boa para aquilo? Conhecimento não cai do céu. Ele nasce da experiência. Por vezes, vendo o efeito da planta num animal. Conta a lenda que foi assim que se descobriu o café: um pastor de cabras, no oriente, percebeu que suas cabras ficavam mais ativas e vivas depois que comiam umas frutinhas vermelhas Ele ficou curioso, começou a experimentar as frutinhas, teve a ideia de torrar as sementes e moê-las para misturá-las com água fervente – e foi assim que o café foi descoberto. Por vezes a experiência era outra: o animal comia a planta, estrebuchava e morria. A conclusão era clara: aquela planta era veneno. Quem bebe veneno morre. Mas podia ser usado em pontas de flechas.
O filósofo Sócrates foi condenado por um tribunal da cidade de Atenas a morrer, bebendo o suco de uma planta venenosa chamada cicuta. Peça ao seu professor ou ao seu pai que lhe conte a história de Sócrates e lhe explique o que ele ensinava. Os venenos sempre foram usados com fins políticos, para matar os inimigos. Prestem atenção quando forem ao restaurante: quando se serve vinho, o garçom põe o vinho primeiro no copo daquele que vai pagar a conta, e ele bebe e aprova. Dizem que é para ver se o vinho está bom. Não é não. Esse ritual tem suas origens em tempos muito antigos: o anfitrião (aquele que convidou) bebia do vinho diante dos convidados como que para lhes dizer: “Podem beber. Não está envenenado!” Hoje, para matar os inimigos, os políticos não usam mais bebidas envenenadas. Eles usam palavras envenenadas... O interessante é que os venenos, se usados em doses mínimas, podem ter efeitos curativos.
Eu mesmo experimentei e ainda experimento os poderes dos chás. Um deles, terrível, se chama losna. É uma planta que cresce no mato. Eu já era mais crescidinho e fiz uma maldade. Peguei uma saracura numa arapuca. Saracura é uma ave do tamanho de um franguinho. Pois eu matei a saracura e pedi para a cozinheira fazer um ensopado de saracura. Ela fez. Eu comi. Castigo da saracura: tive uma dor de estômago terrível. A cozinheira, apelidada Tofa (seu nome era Astolfina) me disse: “O remédio é chá de losna”. Ela fez o chá de losna e eu bebi. Juro: não existe no mundo coisa mais amarga que losna. Foi o chá de losna cair no meu estômago e a saracura saiu voando pela minha boca... Fiquei curado da minha dor.
E os poderes do maracujá? O maracujá é calmante. Há muitos remédios em nossas farmácias feitos à base de maracujá. Sobre o maracujá há uma linda lenda. O nome científico do maracujá é “passiflora”: do Latim passio, que quer dizer “paixão” e flora, que quer dizer “flor”: flor da paixão. Que paixão? A paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, na cruz. A flor do maracujá é roxa. A lenda explica por que ela é roxa. Havia até uma poesia que começava assim: “Maracujá já foi branco,/ Eu posso inté lhe jurá,/ Mais branco que o argodão,/ Mais branco que o luá...” O resto, eu esqueci. Mas me lembro da estória. Ao pé da cruz de Cristo havia um pé de maracujá florido com suas flores brancas. Mas o sangue de Cristo pingou nas flores, e elas ficaram roxas. É por isso que se chama passiflora, flor da paixão. É claro que isso é apenas uma lenda... bonita... Refresco de maracujá é bom para quem tem insônia. Um copo de refresco de maracujá antes de dormir dá sono tranquilo...
Quando eu estava com tosse – a maldita tosse de cachorro, aquela que raspa na garganta e dói – minha mãe me dava um chá de canela e punha angu quente no peito. Angu quente porque não havia bolsa de água quente. Minha mãe sabia que o calor ajudava a dissolver os catarros que ficam nos brônquios e nos pulmões. Claro, não era angu quente, direto no peito. Derramava-se o angu mole num pano, embrulhava-se o angu no dito pano e se colocava o calor embrulhado sobre o peito. Era bom. O calor ajuda a aliviar a dor. Para dor de garganta, gargarejo de água morna e sal. Ou um pano embebido em álcool (pinga faz o mesmo efeito) e enrolado no pescoço.
Quando eu era menino e estava na escola não gostava de estudar história. História amargava feito losna. Eu tinha de decorar datas, nomes de batalhas, nomes de homens sem sentido, acontecimentos políticos que não me interessavam, guerras. Acontecia o que aconteceu com o ensopado de saracura: eu vomitava, esquecia... Mas eu teria amado estudar a história dos homens na sua luta contra a dor, contra a doença e a morte!
No princípio era a dor... Foi a dor que fez os homens pensar. Pensaram no que fazer para parar de sofrer. A ciência começa sempre com a dor. E todo o conhecimento científico que os homens criaram e acumularam através dos milênios tem um objetivo apenas: fazer com que soframos menos. É preciso não sofrer para poder ter alegrias. Assim, a ciência, que tira a dor, está a serviço da arte, que dá alegria.