Crônica: Estórias à beira do fogão...

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Estórias à beira do fogão...
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Minhas netas: Olhem ao redor de vocês. Que coisas vocês estão vendo? As coisas que vocês estão vendo existem. Estão lá. Mas nós temos olhos que vêem coisas que não estão lá. Mesmo coisas que não existem. São os olhos da imaginação. Por exemplo: se eu escrever a palavra “unicórnio”, vocês vão ver, na sua imaginação, um cavalo com um chifre na testa. Ora, cavalos com chifre na testa não existem na realidade. Cavalos reais não têm chifre. Mas, na imaginação, eles existem. E eu posso, então, inventar uma estória de uma princesa que cavalgava um unicórnio! Não é fascinante isso? Na imaginação tudo é possível! Cavalos com asas, vacas azuis, elefantes cor de rosa com bolinhas roxas, abóboras que viram carruagens, ratos que falam... Nós, crianças, homens e mulheres, somos capazes de viver no mundo das coisas que não existem. E é aí que se encontra o poder mágico dos livros: eles nos transportam para o mundo das coisas que não existem e nós vivemos estas coisas como se elas existissem. Vocês não se emocionaram lendo a estória do Harry Potter? E não choraram lendo a estória do amor triste de Romeu e Julieta? E não vibraram com as aventuras do Bastian Baltazar Bux e do Atreiu, do livro História Sem Fim? Pois eu quero levar vocês a visitar o mundo encantado da imaginação que havia lá na roça onde vivi quando criança...

Era uma vez uma casinha de paredes brancas, com portas e janelas azuis, sozinha no meio do campo. Sozinha, nenhuma outra por perto, como a casinha da estória do João e Maria. Solitária, no meio dos pastos verdes, pastos que terminavam numa floresta, lá no fundo. Da chaminé da casinha saía fumaça. A fumaça que sai pela chaminé nos conta que, lá dentro, há um fogão de lenha aceso. E se há um fogão aceso é porque alguém está fazendo comida. O sol está descendo, e já está próximo do horizonte. É o fim da tarde. Os homens que trabalhavam no campo com enxadas, foices e machados, estão voltando para casa. Estão cansados, suados e sujos. Suas mãos são grossas, duras, cheias de calos. Os pássaros pararam de voar. Também eles estão voltando para suas casas. Menos as andorinhas, que gostam de revoar no final da tarde. No fundo da mata um sabiá canta seu canto triste. Vocês já ouviram o canto de um sabiá, no fim da tarde? É tão bonito! As vacas deixaram os pastos e estão no curral. De vez em quando uma delas solta um mugido grosso e comprido. E as galinhas que passaram o dia ciscando a terra à procura de bichinhos pararam de ciscar. Também elas voltaram para o galinheiro. E os galos não cantam mais. Galos e galinhas espicham os seus pescoços na direção dos poleiros ou galhos de árvores, acho que para medir a distância do vôo que terão de voar para se empoleirar. O poleiro alto é garantia de estarem a salvo, longe dos bichos que procuram comida durante a noite. Menos as galinhas chocas, que continuam deitadas nos seus ninhos. Por 21 dias elas chocarão seus ovos, até que deles saiam os pintinhos. Se algum gambá aparecer, era uma vez uma galinha choca... Em casa os homens lavam as mãos, os braços, os pés. Antigamente era assim. Não havia chuveiros com água quente para o banho. Banho era coisa rara. E há mesmo, na Bíblia, a estória de Jesus, que lavou os pés dos seus discípulos. E até o Papa, uma vez por ano, lava os pés de alguns fiéis. Limpos, chegou a hora de comer. Há o cheiro bom da lenha que queima. Sopa de abóbora, feijão, arroz, costelinha de porco, abobrinha refogada. É preciso comer enquanto o sol não se põe, enquanto há claridade. Porque depois que o sol se esconder atrás das montanhas, tudo ficará escuro. Não há luz elétrica. Só a luz das lamparinas, com seu cheiro fedido de querosene. Todos comidos, café na canequinha de lata, lá fora já é noite, escuridão, lua, estrelas, vaga-lumes. É a hora quando os bichos da noite saem para fora: as corujas, os morcegos, os curiangos. Na escuridão, os olhos não vendo nada, a imaginação começa a ver coisas. Coisas que dão medo. Cada pio de coruja, cada barulho de árvore sacudida pelo vento, cada estalo de bambu é um susto. Na escuridão a imaginação começa a ver monstros. É por isso que o escuro dá medo. O escuro lhe dá medo? Quando você acorda no meio da noite e não consegue dormir... Sem luz, sem rádio, sem televisão, é preciso fazer alguma coisa com o vazio da noite. Vocês se lembram? Já escrevi sobre o vazio. É preciso fazer alguma coisa com ele, para a gente se tranquilizar. Quem está com medo não quer ficar sozinho. Todo mundo se reunia na cozinha. A cozinha era o melhor lugar. Todos se assentavam à roda do fogão. Como as chamas do fogo da lenha dançam sem parar, as sombras que elas projetam nas paredes também dançam sem parar. Era então que os adultos começavam a contar casos. Contavam casos de onças, de cobras enormes, de macacos que roubavam crianças, de crianças perdidas dentro da mata escura... E havia também as estórias do lobisomem, da mula-sem-cabeça que soltava fogo pelas ventas, do saci, de almas do outro mundo... O lobisomem, o nome está dizendo, era um homem que, nas noites de lua cheia, se transformava em lobo. Contavam de uma mulher com o filhinho no colo e que foi atacada por um lobisomem. Ela subiu numa árvore para se defender, mas o lobisomem saltava e abocanhava a ponta do cobertor que cobria o nenezinho. Quando a madrugada foi chegando o lobisomem se foi e ela pôde voltar para casa. Mas qual não foi o seu susto ao ver que havia fiapos de cobertor nos dentes do seu carinhoso marido... E se contavam estórias de almas do outro mundo, espíritos dos mortos que voltavam para pôr medo nos vivos. Razão por que, naqueles tempos, todo mundo tinha medo de passar perto dos cemitérios tarde da noite. Pois era ali que as almas do outro mundo ficavam à espreita... Se vocês acham que isso é bobeira, eu digo que não é não. Pois é justo isso que fazem os filmes e a televisão. Naquele tempo não era preciso ir ao cinema e ligar a televisão. Porque cada um tinha cinema e televisão dentro da sua imaginação.

Foi assim que surgiram muitas das estórias infantis que hoje estão escritas em livros. A princípio não estavam escritas; eram só contadas, certamente à noite, ao redor do fogo. Se as estórias eram boas aqueles que as ouviam as aprendiam e, numa outra roda, quando chegasse a sua vez, eles contavam as estórias que tinham ouvido. Assim as estórias iam andando pelo mundo, de boca em boca, seguindo a regra de que “quem conta um conto aumenta um ponto”. Jesus foi um grande contador de estórias. As estórias que ele contava têm o nome de parábolas. Mas ele mesmo nunca escreveu nenhuma. Por muitos anos elas foram passadas adiante por aqueles que as haviam ouvido. Esse passar de uma estória de boca em boca tem o nome de “tradição oral”. Até que alguém, com medo de que elas se perdessem, resolveu escrevê-las. A gente escreve algo para que aquilo não seja esquecido, porque julgamos digno de ser preservado. Quando eu era menino gostava de ler estórias que estavam escritas num livro Contos de Grimm. Grimm era o sobrenome de dois irmãos que se puseram a colecionar e escrever estórias que andavam de boca em boca, há vários séculos. Quando as estórias saem do “de boca em boca” e são escritas, elas se transformam em literatura.

O encanto da literatura está nisso: ela nos tira do mundo das coisas reais e nos faz entrar no mundo da fantasia. Eu posso viver num lugarzinho apertado e sem interesse. Mas se tomo um livro, eu viajo para espaços longínquos e tempos distantes, no passado ou no futuro. O escritor Isaac Asimov escreveu estórias fantásticas a acontecer daqui a 1.000 anos... E o escritor Júlio Verne fez uma viagem à lua muitos anos antes que houvesse aviões e foguetes. A literatura, assim, tem o poder mágico de abolir o espaço e o tempo. Na imaginação tudo é possível.

Na roça os livros eram raros, não havia dinheiro para comprá-los. Mas o meu pai, que tinha sido rico antes de ser pobre, guardou uma coleção de livros chamada Biblioteca Internacional de Obras Célebres. Eram livros grossos, as capas escritas com letras douradas. Eu não sabia ler, mas meu pai me contava a estória do Robinson Crusoé, mostrando-me a figura do Robinson Crusoé, naufragado e sozinho numa ilha deserta, caminhando pela praia, horrorizado diante das marcas de um pé diferente na areia... Você já leu a estória do Robinson Crusoé? Pois trate de ler!

Mas de todas as estórias a de que eu mais gostava era a do Jeca Tatuzinho. Sem saber ler, eu a sabia de cor. Jeca Tatu era um pobre caboclo que vivia numa casinha de sapé... Doente, cheio de lombrigas, andando sempre descalço, ele não tinha ânimo para nada. Mas depois que tomou os remédios, se livrou das doenças, pôs as lombrigas para fora e passou a usar sapatos, ele ficou um espanto de força, disposição e coragem. Na fazenda dele até os bichos passaram a usar botina. Mas a cena de que eu mais gostava era quando, indo pelo meio do mato, ele se encontrou com duas onças. Ele não teve medo. Deu murro na cara da onça dizendo: “Conheceu, papuda!” Pois diz a estória que as onças estão correndo até hoje...