Crônica: Estudantina

Robledo Carlos (de Divinópolis)

Crônica: Estudantina
Robledo Carlos é membro da Academia Formiguense de Letras




Entro então no salão da Estudantina, quase sessenta anos depois, não como um jovem deslumbrado com a juventude e toda uma vida pela frente em um frenesi estonteante de dúvidas e êxtase, mas sim um velho sintecador de tacos. Ali, diante de mim, onde a sociedade sauvense se deliciava com as noites de grandes bailes, na festa do comércio onde se elegia a garota mais linda do comércio, festa para arrecadar fundos para instituições, quermesses, saraus e assim vai.

Hoje estou aqui para raspar os tacos do salão da estudantina, trabalho com recuperação de pisos em madeira.

Confesso que estou emocionado, de estar onde talvez foi um dos palcos mais incríveis da minha existência e de sonhos inatingíveis.

Foi, literalmente, uma viagem ao tempo. E agora, diante do vazio, quebro o silêncio ao colocar meu equipamento em uso.

Um pequeno palco com uma escada na lateral e, logo em seguida, a uns quatro metros para o lado, o bar, com o mesmo velho lustre de cristal, mas com a mesma imponência que sempre me causou admiração.

Grandes artistas estiveram nesse pequeno palco, entre eles Altemar Dutra, Nelson Ned, Osvaldinho da Sanfona e Seus Pracinhas e muitos outros.

Foi aqui nesse salão que conheci Matilde, uma moça belíssima, era de Juiz de Fora, tinha parentes aqui e viera para estudar.

Ela tinha 16 anos, um ano mais velha do que eu, era de altura mediana, cabelos pretos, olhos completamente negros e um corpo escultural.

Lembro-me como se fosse hoje era o baile Rainha do Comércio promovido pela Associação do Comércio de Saúvas. Eu havia dançado com uma prima dela e depois de alguns pequenos flertes, resolvi convidá-la para dançar. Eu estava do outro lado do salão, então eu precisava atravessá-lo todo. O salão estava bem vazio, então parti para o intento, eu parecia estar a quilômetros de distância de Matilde, e tenso, imaginando caso ela não quisesse dançar comigo, eu iria para o bar ao lado para não ter a vergonha de atravessar o salão de volta, caso Matilde me dissesse um não.

Mas, felizmente, tudo correu bem e fomos para o meio do salão.

Tocava Killing me Softly, então comecei com aquele tró ló ló de sempre em busca da conquista.

Dançamos umas três músicas e fomos para uma varanda para nos conhecermos melhor.

Ela contou-me de sua vida e eu a minha para ela, obviamente recheada com algumas pitadas de mentiras.

De certo é que passamos a nos encontrar com certa frequência e depois começamos a namorar.

Ah se esse salão falasse! Penso que por algumas vezes ele talvez tenha se feito de cego e surdo das confidências e juras de amor, palavras doces e, muitas vezes, até quentes.

Foi aqui, bem nesse cantinho escurinho que coloquei as mãos nos seios de Matilde, uma sensação indescritível. Eram durinhos, só podia senti-los, não os via, não poderia tirar os seios dela para fora, aproveitava a escuridão da luz negra. 

Como é bom lembrar de tudo isso aqui, nesse espaço agora vazio.

Enfim, depois de duas semanas de trabalho, sentado na escada que me leva ao palco, fico a observar o piso pronto e todo o esplendor do salão.

A imensidão do vazio do salão, a distância do tempo de juventude e o espaço vazio e misterioso do amanhã são os meus pensamentos. E dos sonhos que nem me lembro mais, ficaram aqui ou foram para Juiz de Fora.

Os tacos de jacarandá e cerejeira fazem um mosaico incrível, destacam-se pelas cores das madeiras, e no centro, bem abaixo do lustre, um formato de estrela feito pelo mosaico.

Quantas danças, quantos trotes, marchinhas e valsas deslizaram lindamente aqui.

Onde estaria Matilde agora? Pois ela voltou para Juiz de Fora e na sua última carta terminava o nosso namoro e pediu-me para que eu não a respondesse.

Tomara que estejas bem, pois casei com Dolores, que é uma bela mulher, e tenho três filhos e um neto.

Fecho a porta do Estudantina e dou uma última olhada para o salão simplesmente belo, talvez tenha sido a última vez que estive aqui. Hoje ouvirei Morris Albert, Feelings, a nossa música que tanto gostávamos.

Adeus Matilde, ficaram os sentimentos em mosaicos e cristais.