Crônica: Mistérios do Egito antigo

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Mistérios do Egito antigo
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




O faraó, filho dos deuses, estava perturbado. Sonhara dois sonhos estranhos, de sentido misterioso. No primeiro deles, ele via 7 vacas gordas e bonitas saindo do rio Nilo, seguidas por 7 vacas magras e feias. E, a despeito do fato de vacas serem animais vegetarianos, as 7 vacas magras e feias devoravam as 7 vacas gordas e bonitas. No segundo sonho, ele via 7 espigas bonitas e cheias de grãos surgindo de uma haste, seguidas por 7 espigas feias e mirradas. E a mesma coisa acontecia: as 7 espigas feias e mirradas comiam as 7 espigas bonitas e cheias de grãos. O faraó, não conseguindo compreender o sentido dos sonhos, mandou chamar os sábios e intérpretes que faziam parte do seu ministério. Mas também eles não conseguiram decifrar o mistério dos sonhos. O copeiro-mor do palácio, que passara uma temporada na prisão, dirigiu-se então ao faraó e contou-lhe de um jovem que conhecera na prisão, a quem os deuses haviam dado o dom da interpretação dos sonhos. Era um hebreu, de nome José. O faraó ordenou que José fosse trazido à sua presença. Ao ouvir o relato dos sonhos do faraó, José compreendeu imediatamente o seu sentido. E isso foi o que ele disse: “Os dois sonhos têm o mesmo sentido. As 7 vacas bonitas e gordas e as 7 espigas bonitas e granadas são 7 anos de fartura que se seguirão. As 7 vacas feias e magras e as 7 espigas feias e miradas são 7 anos de fome que se seguirão à fartura.”

Alertado pela interpretação de José, o prudente faraó tomou as providências administrativas necessárias: ordenou que se construíssem celeiros por todo o país e que se armazenassem grãos suficientes para os anos de fome. E assim o Egito foi o único país a passar incólume pelos anos das vacas magras. Isso está relatado nas Sagradas Escrituras, no livro de Gênesis, a partir do capítulo 41.

Entre os tesouros arqueológicos recentemente recuperados de uma cidade egípcia submersa há séculos, foi encontrada uma pedra onde se encontra um relato diferente do que aconteceu. O que esse documento conta é o seguinte: o faraó, ao ouvir a interpretação de José, e olhando para os vales férteis e verdejantes às margens do Nilo, não acreditou na profecia. Achou que José era um espertalhão que tentava ludibriá-lo. Assim, enviou-o de volta à prisão. E, de fato, por 7 anos as margens do Nilo continuaram férteis como sempre tinham sido. Mas aí, repentinamente, veio uma seca nunca vista. As águas do Nilo baixaram. Suas margens secaram. As vacas morreram. As poucas espigas que nasciam não tinham grãos.

Em pânico, o faraó convocou seus ministros. “Que fazer?”, ele perguntou. “É preciso racionar os alimentos, Majestade! Todo o país deve comer menos para que não haja fome!” “Está certo!”, disse o faraó. “Mas como faremos o racionamento?” Os sábios responderam: “É preciso que não haja injustiças. Todos os cidadãos devem fazer o mesmo sacrifício! Assim, propomos que todos no reino, sem distinções, passem as comer 20% menos do que comiam. E como as pessoas só obedecem sob ameaça, propomos que aqueles que não comerem 20% menos sejam condenados a passar um mês sem comer!”

O faraó gostou da sugestão. Soluções baseadas em números, estatísticas e porcentagens são as mais científicas. E assim ele fez publicar com édito que seus arautos proclamaram pelo reino, anunciado o racionamento de comida e as punições para os que insistissem em comer muito.

Abdul El Gulash era um mercador que se enriquecera pela fabricação de relíquias arqueológicas. De todo o mundo vinham homens de negócios para comprar as suas mercadorias que, já se sabia naquela época, eram um excelente investimento para o futuro. Abdul era um fino conhecedor de psicologia. Sabia que os melhores negócios se fazem à volta de uma mesa farta regada a vinho. Assim, parte da sua política de relações públicas estavam festivais gastronômicos que ele oferecia diariamente aos seus possíveis clientes. Em suas despensas se encontravam as comidas mais refinadas: carnes, peixes secos, aves, cebolas, pães, bolos, manteiga, ovos de codorna, ovos de crocodilo, mel, leite, queijos, azeite, figos, maçãs, tâmaras, uvas, romãs, nozes. Anfitrião, ele tinha de banquetear-se junto aos seus convidados. E seus hábitos gastronômicos se revelavam nas dobras de gordura que cobriam o seu corpo da cabeça aos pés.

Seraphim Ibn Shinfrim era um pobre artesão que trabalhava na fábrica de Abdul El Gulash. Recebia um salário miserável que apenas dava para comprar o essencial para a sua sobrevivência e a de sua família, mulher e 4 filhos. Carne, só em dias especiais de festa. Suas refeições se resumiam em pão, sopa de cebola, leite de camela e, eventualmente, queijo. Como não podia deixar de ser, tanto Seraphim quanto sua mulher e filhos eram esquálidos e pálidos.

Mas havia algo que unia os dois, Abdul e Seraphim: eles eram patriotas, amavam o faraó e acreditavam que todas as suas ordens eram divinas. Ao tomar conhecimento do édito do faraó, ambos disseram: “É isso mesmo. É preciso comer menos!” Abdul El Gulash chamou o seu mordomo e ordenou: “De hoje em diante, todas as comidas terão de sofrer um corte de 20%. 20% menos carnes, 20% menos frutas, 20% menos vinhos...” Seraphim Ibn Shinfrim não tinha nenhum mordomo. Assim, reuniu sua família e anunciou: “Pela felicidade do reino do Egito, de hoje em diante comeremos 20% menos carne, 20% menos sopa, 20% menos leite...” Afinal de contas, ambos sabiam que números, estatísticas e porcentagens, não mentem...

Abdul El Gulash continuou gordo e banqueteando-se. 20% a menos do que comia não lhe faziam diferença. Quanto a Seraphim Ibn Shinfrim, consta que ele e sua família morreram ao serem punidos com um mês sem comida, por não terem conseguido comer 20% a menos do que comiam...