Crônica: O MANTRA

AC de Paula (de São Paulo)

Crônica: O MANTRA
AC de Paula é dramaturgo, poeta e compositor




Ele era do tempo em que o mantra futebol é coisa pra homem, era conhecido e recitado no dia a dia pela molecada do bairro, nas peladas que aconteciam no campinho de terra, traves tortas e sem redes, na disputa de pênaltis, e nos jogos da turma da rua de baixo contra a turma da rua de cima, que muitas das vezes terminava em tumulto que era esquecido por todos antes mesmo da próxima partida. No time da sua rua tinha o Bola 7, o Alemão Batata, o Gordo que era dono da bola e não podia ficar de fora por questões óbvias e era sempre escalado no gol, o Neguinho bom de bola que era primo do Bola 7, o Zarôio, o Perninha, o Boca de Caçapa. Ninguém ligava para os apelidos nem para as gozações, afinal ninguém ia ficar choramingando, eram as regras tacitamente aceita por todos. Ele jogava na defesa e a sua missão era não deixar o atacante do time adversário ameaçar a cidadela do Gordo, ele era o último obstáculo entre eles, e se o atacante passava, era gol na certa. Ele não era assim um craque de bola, mas também não era um perna de pau e não brincava em serviço, se o jogador passasse por ele uma vez, quase que com certeza seria a única, pois segundo seus próprios critérios ele defendia seu campo sem quaisquer regras ou critério algum, batia da correntinha pra cima. Como dizia um antigo narrador esportivo, o tempo passa, e o tempo passou, muita coisa mudou, mas quando o assunto era futebol ele continuava fiel ao seu mantra. Claro que ele sabia da evolução do futebol feminino, ver jogadoras dando verdadeiro show de bola na tv é uma coisa, mas ele não conseguia se imaginar disputando uma partida marcando uma mulher em campo. Apesar de tudo isso ele jurava que não era preconceito, era apenas o pensamento natural de quem não era do tempo dos brinquedos eletrônicos, mídias sociais, e telefone celular. E como tudo na vida acontece, era fatal que acontecesse, e aconteceu, o tempo se encarregou de provar que o futebol, tido como um esporte democrático era na verdade hostil e excludente para diversas pessoas, dentre elas as mulheres. A festa de fim de ano da empresa foi em um clube de campo, e em lugar da conhecida e tradicional partida entre casados e solteiros, haveria um jogo entre times mistos sem quaisquer restrições. O mantra dos tempos de moleque martelava sua cabeça e por fim ele se convenceu de que já que as mulheres exigiam igualdade no tratamento era assim que ia ser ele ia jogar pra valer, elas que não reclamassem depois, afinal ele tinha uma missão a cumprir, impedir o avanço do ataque adversário a qualquer custo! A bola foi lançada para a atacante adversária uma morena bonita de rabo-de-cavalo e ele pensou, agora vamos ver quem tem garrafa pra vender!  Deu o bote e a atacante pedalou com a perna esquerda, dançou para a direita, e ele não conseguiu evitar a vexatória carretilha, foi bem pior que tomar uma caneta e a bola cavada balançou a rede. A atacante de rabo-de-cavalo correu pro abraço, ele virou alvo de gozações! Ele não podia suportar aquilo, era ultrajante, mas ele sabia qual era a solução, mal a bola rolou novamente ele deu um pique de uns dez metros e levou a mão à coxa. A substituição foi imediata, e saindo de campo na maca lhe bateu uma saudade do tempo em que menina só brincava de boneca e vestia rosa.