Crônica: O rádio
Rubem Alves (1933-2014)

Meu pai parou o Plymouth 1926 de manivela em frente à nossa casa e abriu a porta falando alto: "Surpresa! Surpresa!" Corremos todos para ver o que era. Dentro do automóvel estava aquela coisa incrível sobre a qual já tínhamos ouvido falar mas só havíamos visto nas vitrines de lojas: um rádio. Ninguém mais tinha rádio nas redondezas. A notícia se espalhou e todo mundo veio ver a maravilha.
Caixa de madeira, bicuda em cima, até pegava o estrangeiro. As válvulas acesas, o tempo de aquecimento e, de repente, a voz vinda de muito longe, Londres, BBC, quando o Big-Ben tocava meia-noite eram nove horas no Brasil, que coisa mais estranha que as horas não sejam as mesmas, quando é meio dia no Brasil, é meia noite no Japão, os japoneses estão de cabeça para baixo, como é que não caem, como é que a água do oceano não chove para cima?
A vizinhança ficava pasma, aí meu pai iniciava lições de geografia e ciência que ninguém entendia, a terra rodando, a força da gravidade, Rádio Belgrano de Buenos Ayres, Rádio Encarnacción del Paraguay, ZYB-2, Rádio Club de Varginha, a estação que ouvem, na voz de Silas Sampaio Moraes, que voz mais máscula, é o Programa da Amizade, ouviremos agora "O Palhaço Seraphim", que Romualdo oferece à Otília pelo seu aniversário, com milhões de votos de felicidades“, "Oh, como é triste a história inglória do palhaço Seraphim...". Nós, de origem nobre, quem cuidava da nossa nobreza era a minha mãe, não nos misturávamos com o gosto da gentalha, Vicente Celestino e outros, só oferecíamos valsas de Strauss, Danúbio Azul, Contos dos Bosques de Viena...
O rádio mudou a nossa vida. Antes, a única fonte de novidades disponível era a língua da dona Mazinha, velhinha sem dentes que mordia muito. A janta era às cinco. Depois o pai punha as cadeiras de vime na calçada, e ali, agachados no capim que crescia na praça, alguns vizinhos se reuniam para contar casos. Mas logo baixava a escuridão, a gente entrava, não tinha o que fazer e o remédio era ir para a cama. Foi o rádio que me informou que a vida continuava noite adentro.
Terminada a sessão de casos a gente entrava, não para dormir, mas para o mundo novo das novelas, a "Rosinha", caboclinha inocente seduzida por um conquistador da cidade, "Rosa de Sangue", que levava a gente para os salões de baile de Viena onde se dançavam as valsas de Strauss e se ouvia o ruído dos sabres dos nobres; a "Hora da Saudade", os programas caipiras, Alvarenga e Ranchinho, Jararaca e Ratinho, a escolinha do Nhô Totico.
O rádio levou a guerra para dentro de casa, e a gente acompanhava as batalhas num mapa-mundi pregado na parede da sala de visitas, com alfinetes indicando os pontos das linhas de frente.
A guerra passou a ser o assunto preferido também das conversas à volta das cadeiras de vime, e todos tinham o seu jeito de recontar o que estava acontecendo.
"E Stalingrado continua a resistir", dizia o Carlos Frias no seu programa de rádio, com sua voz misturada aos pistões roucos da Moonlight Serenade. "Pois é. Hoje à meia-noite vão mudar o nome de Stalingrado para Hitlerlogrado...", dizia o Zé, filho da dona Mazinha. Não, ele não falava de brincadeira. Falava sério, notícia a ser acreditada, como se tivesse acabado de sair do noticiário do Repórter Esso. Meu pai baforava o seu cachimbo, sorria concordando, e a fumaça azulada transformava as fantasias em realidade.
Até que veio a notícia que a todos apunhalou. Até ali guerra era coisa que acontecia muito longe, do outro lado do mar, sobre o que a gente inventava casos. Mas agora a guerra estava ali na esquina.
Eles moravam na melhor casa da praça. Tinha alpendre com grade de ferro, escadas, um jardinzinho ao lado com um pé de manacá, romã, folhagens. Quase nunca saíam de casa. Não recebiam visitas. Não batiam papo na rua. O máximo era um delicado cumprimento, de longe, com um sorriso discreto. Deles ninguém tinha qualquer queixa e nem mesmo a língua venenosa de dona Mazinha conseguira lambê-los. Não se sabia de onde tinham vindo. Só os dois, um casal já mais velho. O máximo que se podia fazer era imaginar as razões por que eram assim tão diferentes, tão estranhos, tão ausentes.
Talvez que tivessem sido atingidos por algum golpe cruel do destino e que isso os tivesse levado a se afastar de tudo e de todos, sofrendo silenciosamente e em segredo a sua dor. Talvez o seu mistério se devesse a isto: que julgavam que ninguém merecia ouvir a sua estória, que se a ouvissem não compreenderiam. Aquela casa guardava um segredo. E era assim que a gente se sentia, ao passar pela sua calçada, ao sentir o cheiro do manacá, ao cobiçar as romãs que se abriam. Mas nenhum menino jamais se atreveu a pular o muro e invadir aquela casa de mistérios para furtar uma.
"O Bahia foi torpedeado por um submarino alemão, nas costas do Brasil. Pouco se sabe sobre os sobreviventes", anunciou o rádio.
E então, de repente, percebemos que a guerra estava ali bem pertinho de nós, na esquina, na casa misteriosa de esquina, com manacá e romã no jardim: o filho do casal misterioso era tripulante no Bahia.
As pessoas chegavam às portas e às janelas, procurando algum sinal que viesse da casa. Uma janela que abrisse, um rosto que aparecesse, um choro que se ouvisse. Mas nada. Continuavam os dois como sempre tinham sido, vivendo a sua dor infinita no abandono da sua solidão. Era como se não existíssemos, como se não contássemos. Só o meu pai não ficava espiando. Sentou-se à frente do rádio com uma estranha obstinação, e virava o ponteiro de uma estação para outra. Até que, de repente, levantou-se com um pulo, saiu correndo pela porta da frente sem nenhuma palavra de explicação, atravessou a linha da estrada de ferro, correu em direção à casa misteriosa, entrou portão adentro sem bater, subiu as escadas, bateu na porta com batidas firmes. Foi o marido quem abriu. Dentro da casa estava escuro - lembro-me bem, pois corri atrás do meu pai. Ele nos olhou com olhos tristes, sem dizer uma única palavra.
"Ele está vivo!", meu pai gritou enquanto ria. "Acabei de ouvir pelo rádio. Ele está vivo!"
De novo ele não disse nada. Só tomou as mãos de meu pai entre as suas e as beijou... Não me esqueci do seu nome. Chamava-se Aristides.
PS - O adolescente era ruim em química. Só tirava notas ruins. O professor o chamou e lhe disse: "Continuando assim você vai ser reprovado..." O menino respondeu: "Vou continuar. Não tenho cabeça para química. Não gosto de química. Não há lugar para química na minha vida..." O professor observou: "Mas sei que você está interessado em literatura. Escreve para o jornal do colégio... E parece que você é bom nisso..." O aluno sorriu: "Sim, sou bom em literatura. É a minha vida..." O professor de química sorriu e lhe fez uma proposta insólita: "Vou resolver seus problemas de química para que você passe de ano e possa se dedicar à literatura..." E assim aconteceu. O professor de química fez o que o regulamento proibia. Deu cola... O aluno não aprendeu química mas pode se dedicar à literatura. O nome do aluno é Ignácio de Loyola Brandão. Não sei o nome do professor, que já morreu. Mas o admiro, assim mesmo, sem nome. Ele sabia que o importante não era o programa. Era o aluno.