Crônica: Papo de papa-defunto
Manoel Gandra (de Formiga/MG)

Herdei de meu pai uma funerária. Negócio de família, a empresa esteve entre os Fonseca desde a época de meu bisavô, o velho Olintho. Pode-se dizer que nasci entre os caixões e me criei entre velas e coroas. Literalmente, na nossa família, a morte é hereditária.
Ainda menino, aprendi a enfeitar defuntos e a ornamentar velórios. Nunca tive medo de morto (só de vivo) e superstição não é o meu forte. Já atravessei, sozinho, cemitérios durante madrugada sem lua e cheguei a transportar corpos por mais de mil quilômetros em uma kombi 1975, que veio no pacote da herança.
O dia-a-dia de funerária em cidade do interior, apesar de tenebroso, é moleza. Às vezes, os funcionários passam até uma semana sem ter de trabalhar, ficam esperando os outros morrerem e, se ninguém morre, não há serviço.
Geralmente, nos fundos, há quartos para os que fazem plantão e uma televisão que sempre está no último furo. Reúnem-se ali, funcionários e amigos para assistir a uma partida do Galo ou para um carteado. Conversa para ser jogada fora é o que não falta, amigos sempre vêm com fofocas, confidências e anedotas novinhas em folha para alegrar o ambiente. É contraditório, mas toda funerária é uma festa.
A descontração dos bastidores que marca o mercado fúnebre tem seus motivos. A coisa parece que é triste só na fachada, mas no fundo (e nos fundos) é muito descontraída, isso porque se faltarem os amigos para chegarem com algum caso, o próprio negócio se incumbe de fazê-los existir.
Dentre as inúmeras passagens que tive como papa-defunto, tem uma que bem me recordo às gargalhadas e que faço questão de contar.
Morava no Bairro Água Vermelha uma velha senhora conhecida como Sá Rita. Descendente de escravos, ela era benzedeira das mais afamadas e mantinha um terreiro de umbanda em um quartinho na horta. Mulher trabalhadeira e parideira, criou sozinha os onze filhos (dez meninos e uma menina) que teve em seus três casamentos.
A casa de Sá Rita era uma meia-água de adobe que ficava em um canto do lote, o resto da frente era uma cerca de bambu mal feita e da rua se via o seu canteiro de couve e o quartinho de benzer.
De origem pobre, a anciã conseguiu criar os meninos, dar educação, mas não deu conforto. O pessoal teve de começar cedo no batente. Os três mais velhos, filhos de um goiano fabricante de gaiolas e cachaceiro inveterado, foram visitar o pai que tinha voltado pra outra família que deixara no planalto central, e ninguém nunca mais teve notícias.
Como o homem não voltou, Sá Rita se juntou com um calceteiro da Prefeitura de Pains e com ele teve mais sete meninos. O segundo marido acabou morrendo de xistose. Os meninos foram crescendo e procuraram rumo, foram todos pra São Paulo. Com seus 46 anos completos, Sá Rita se engraçou com um rapazinho vendedor de redes que alugou uma casa perto da dela. Juntaram os trapos e a vida melhorou.
Foi daí que nasceu Maria Aparecida, que, ninguém sabe o porquê, ganhou o apelido de Loló. Temporona, depois de dez cabeçudos foi a primeira mulher, ela acabou por merecer todo desvelo e carinho daquela senhora que já se curvava com um reumatismo e uma tosse que desafiavam os conhecimentos do Doutor Afonso Braga, afamado médico da época.
A mocinha foi criada como uma boneca. Laço de fita e saia rodada, ela mal tinha acabado de completar 14 anos, quando seu pai foi vender redes em Campo Belo e se evaporou. Ainda criança, ela ganhou a obrigação de cuidar da mãe.
Tempo vai, tempo vem, Loló foi se enturmando com uma garotada da pesada, que gostava de hora dançante e de cervejinha gelada. Da cervejinha pro cigarrinho do capeta foi um passo. Do fuminho pra mini-saia com bota e meia arrastão, mais um.
Na gandaia, a fogosa Loló foi relaxando seus compromissos com Sá Rita. Sua vida se resumia em tomar Martini e dançar lambada. Nada que tivesse a ver com um pingo de responsabilidade.
Era mês de junho e Loló se emperequetou para ir ao Parque de Exposições. Tinha show da Banda Revertério e ela não podia perder. Já saiu de casa chumbada. Bebeu, dançou e se esbaldou. Chegou da rua, o relógio da Matriz estava dando oito e meia da manhã. Chamou pela mãe e nada, foi ao quarto e nada. Pensou que ela já havia levantado pra benzer e foi à horta. No chão, ao lado de uma sementeira de alface, Sá Rita dava o último suspiro. Colapso.
Era meio-dia, quando o telefone da funerária tocou. Tínhamos de levar um caixão. Eu e um funcionário colocamos um dos mais baratos na kombi e rumamos pra Água Vermelha.
Ninguém ficou sabendo que Sá Rita tinha passado mal sozinha e que sua filha tinha ficado a noite inteira na gandaia.
Para fazer cena e mostrar o quanto estava sofrendo com o passamento da mãe, a cada visita que chegava, Loló dava um espetáculo:
– Não leve a mamãe não! Eu quero ir com a mamãe!
Debruçava-se sobre o caixão e mais show:
– Eu quero morrer! Eu quero morrer! Eu não vivo sem a mamãe! Eu quero ser enterrada com a mamãe! Me leve com a mamãe!
O pessoal se juntava para carregá-la, ela quase desmaiava. Colocavam na cama... água com açúcar... chá de erva cidreira... chegava um parente...
– Mamãe, me leve com você! Eu não vivo sem a mamãe! Eu quero morrer! Eu quero ser enterrada com a mamãe!
Aparecia mais um e a gritaria voltava:
– Eu quero morrer! Eu quero ser enterrada com a mamãe! Mamãe, me leve!
A ladainha durou até as cinco da tarde quando o cortejo saiu. Os vizinhos, todos solidários com o sofrimento da filha de Sá Rita. Quando chegaram ao Cemitério do Santíssimo, já estava anoitecendo, o tempo fechou arrelampado. Começou o pé d’água.
O coveiro Chico da Lica, profissional competente, tinha furado uma cova funda ao lado de um muro que dava pra um matagal. A chuva caía e enxurrada foi descendo e enchendo a cova. Todo mundo de capa e guarda-chuva. O caixão vai descendo na cova e o Loló reinicia o berreiro:
– Mamãããe, me leve! Mamãããe me leve! Seu Chico, Seu Chico, me enterre com a mamãe, Seu Chico! Me enterre com a mamãe, Seu Chico!
A moça gritou e sapateou tanto, que parte da beirada da cova desbarrancou, ela escorregou na lama e caiu sentada ao lado do caixão. Seu discurso mudou na hora:
– Gente, gente! Socorro! Me tirem daqui! Me tirem daqui! Gente, gente, pelo amor de Deus me tirem daqui!
Alguém deu a mão pra Loló. Desajeitada, ela ficou caladinha até a última pá de terra. No outro dia, teve muito o que se contar nos fundos da funerária.