Crônica: Presente para um pai sério
Rubem Alves (1933-2014)

É inútil mostrar um quadro de Monet para um cego. É inútil tocar uma sonata de Mozart para um surdo. Isso é triste porque a cegueira e a surdez privam as pessoas de muitas coisas bonitas. Mas há o caso das pessoas que têm olhos e ouvidos perfeitos e nem vêem e nem escutam. Bem dizia o Alberto Caeiro que “não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores”. E Murilo Mendes observava que há pessoas que só escutam depois que se lhes arrancam as orelhas. Acontece o mesmo com a poesia. Não basta saber ler. Lêem o poema e ficam com cara abobalhada perguntando “E daí?” Foi por isso que um sábio oriental, há muitos séculos, depois de muitas decepções com leitores que liam seus poemas, deu o seguinte conselho aos poetas: “Não mostres o teu poema a um não poeta”.
Mas há casos de milagres súbitos: os cegos começam a ver, os surdos começam a ouvir. Como aconteceu com aquela paciente minha que chegou dizendo que achava que estava ficando louca. Ela sempre se divertia na cozinha cortando cebolas com gestos automáticos. É preciso cortar cebolas para cozinhar muito embora o ato de cortá-las faça arder os olhos e deixe seu cheiro inconfundível nas mãos. É perigoso acariciar o rosto do namorado depois de cortar cebolas. Mas quem cozinha tem de cortá-las, porque servem para dar gosto aos molhos. Comida sem cebola é comida em que falta alguma coisa. Pois ela, cansada de cortar as banais cebolas, de repente, ao olhar para uma delas que ela acabara de cortar, levou um susto. Viu algo que nunca tinha visto: um vitral de catedral, cristais brancos em círculos concêntricos brilhando sob a luz. Por isto, por ter visto o que nunca vira, achava que estava ficando louca. Eu a tranqüilizei. Não era loucura. Seus olhos haviam se aberto. Agora ela tinha olhos de poeta. Neruda, olhando para uma cebola, viu uma rosa de água com escamas de cristal. Ela vira um vitral de catedral. A abertura dos ouvidos aconteceu com o sr. Américo, homem humilde, nascido na roça, religioso, que só tinha ouvidos para pachorrentos hinos de igreja.
Pois, não sei como, depois dos 80 anos os seus ouvidos começaram a ouvir música clássica. Não é que ele nunca tivesse ouvido. Ouvira com o corpo, não ouvira com a alma. Mas, de repente, a alma começou a ouvir e a vida do sr. Américo se transformou. Ficou assombrado, inundado de alegria, e passou o resto da sua vida, até sua morte aos 92 anos, colecionando discos de música clássica.
O mesmo acontece com poesia. Quando jovem, eu pensava que poesia era besteira, coisa de gente que não tem mais o que fazer. Nas festas da escola havia sempre meninas recitando poesia e esquecendo - para agonia de todos. Poesia era um sofrimento. Eu preferia as coisas exatas, matemática, física, química. Aí, de repente, sem que eu nada tivesse feito para que isso acontecesse, a poesia me agarrou - que desde então passou a ser comida para o meu corpo e para a minha alma.
Poesia é comida. Archibald MacLeish dizia que os poemas deveriam ser palpáveis e silenciosos como um fruto maduro. Mário Quintana sonhava com um poema cujas palavras sumarentas escorressem como a polpa de um fruto maduro pelos cantos da boca, um poema que matasse de amor pelo simples gosto, antes mesmo que seu sentido fosse compreendido. Coisa estranha essa: que os poemas têm poder mágico mesmo quando não os compreendemos.
Aconteceu, faz uns anos. Recebi uma caixa. No remetente, o nome de Maria Antônia. Tinha sido minha aluna. Barulho estranho dentro da caixa: coisas que rolavam para lá a para cá. Abri. Frutinhas amarelas, do tamanho de nésperas. Não as conhecia. Eram cerigüelas. Junto das cerigüelas, um manuscrito de poemas. Ela pedia que eu escrevesse o prefácio. Como recusar, se ela me seduzia não com uma única maçã, mas com dezenas de cerigüelas? Aí, lendo os poemas dela enquanto comia as cerigüelas, concluí que cada poema era maroto e gostoso como um cerigüela. Comecei a rir. Me senti como menino. E sugeri que o livro deveria ter o nome da frutinha - com o que ela concordou.
Depois ela publicou um outro. De novo fiz o prefácio. Vocês já devem ter percebido que eu gosto da Maria Antônia e ela gosta de mim. Na verdade, é impossível não gostar dela. Também ela é uma cerigüela. Mas, desta vez, não fui eu que dei o nome: Terra de Formigueiro. Não sei como esse nome apareceu. A gente nunca sabe como aparecem as metáforas poéticas. Na contra capa está uma explicação: “terra de formigueiro: assim são estes escritos: coisas simples que a gente passa por cima sem reparar, mas que vem do fundo, trazido grãozinho por grãozinho...” Maria Antônia: formiga que vai trazendo poemas do fundo da sua alma.
Como pouca gente compra livro de poesia, especialmente se o poeta não for famoso, eu vou transcrever alguns dos poemas dela, para vocês sentirem o gosto e virarem crianças...
* “Silêncio é o melhor alucinógeno. / Adoro injetá-lo na veia / ou cheirar longas fileirinhas de silêncio, / deixando descortinar tempestades de imagens / no deserto da razão”
* “Tenho um panelão próprio pra cozinhar inveja. / Com ele produzo as invejinhas e invejonas diárias / que causam nenhum dano se dou conta de digeri-las todas. / Duro é quando sobra inveja na panela de um dia para o outro / azedando, mofando, criando bicho. / Dai-me, Senhor, / paciência e estômago pra agüentar engolir tudinho / essa comida gosmenta / lavar todos os dias a vasilha, / arear com humildade / até ver refletido no fundo dela / o rosto de quem não é santa, / por isso mesmo humanamente simpática”.
* “Minha fome não é na barriga. / O buraco é mais em cima: / o peito é quem ronca. / E não encontro / nos melhores hipermercados / o que dar para ele”.
* “Alguém achou numa caixa toda regaçada / um estoque imenso de amor / novo em folha / todo amor que faltava no mundo. / Estava embolorado, / esquecido. / Que alívio! / Agora está aqui no tamanho certo / para crianças, jovens, adultos e velhos. / Cheirando a mofo / mas sem nenhum furo de traça. / O amor é incorroível”.
* “Estar feliz é bambolear, / soltar o corpo, / ver para crer / e ver que dá mais certo a vida combinada com felicidades, / quando a gente não põe o pé no freio, / deixando tudo deslizar / bicicletamente...”
* “Quero inventar minha própria religião. / Quero dogmas tão personalizados quanto meu DNA. / Uma seita tão nova que cheire a amanhecer, / onde serei pagã, sacerdotisa e quase deusa. / Quero reencontrar meus ritos, nua, íntegra e silenciosa. / Diante do divino meu espírito em arco beijará a terra, / sorvendo seiva viva, / jorrando água pelo meu corpo num autobatismo infinito”.
* “Uma caixa dentro de outra, de outra e outra. / Assim morei na barriga de uma mulher / que morou na barriga de outra / que morou na barriga de outra / desde o início dos tempos / formando correnteza infinita / onde desliza, navegam mensagens hereditárias”.
* “Tudo que se planta colhe / E na entressafra é preciso deixar descansar a terra. / Sentar e ficar olhando o nada acontecendo. / Confiando que a vida se recompõe silenciosamente. / Então estar alerta quando chegarem as chuvas / e se fizer o momento de outra vez semear, / cuidar e lutar”.
Manoel de Barros diz que “palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria”. A Maria Antônia sabia disso mesmo antes de ler o Manoel de Barros. Tudo que ela escreve é brinquedo. Adulto sério não entende. Fica com cara amarrada. Está ocupado com coisas importantes. Se começou a sorrir é porque o milagre está acontecendo, o adulto sério bobo está virando criança e é capaz que saia por aí molhando os pés na enxurrada. De agora para frente todo mundo vai ficar feliz na presença dele. E se for esse o caso do seu pai, aconselho que você lhe dê, como presente, o Terra de Formigueiro. É baratinho. (Maria Antônia de Oliveira, Papirus).
PS: Quase ia me esquecendo. Minha homepage está no ar. www.uol.com.br/rubemalves ou www.rubemalves.com.br. Casa nova, ainda tem muitas coisas a serem colocadas no lugar. E a outra coisa: meu Até Breve ao Dali foi de curta duração. Está reabrindo, como Dali, sob a direção de ou outro restauranteur, Pedro Carlos Sforcini Jr. Vou fazer ponto lá pra me curar de saudades...
“Neruda, olhando para uma cebola, viu uma rosa de água com escamas de cristal”.
“Enquanto comia as frutas, concluí que cada poema era maroto e gostoso como um cerigüela”