Crônica: Quero gritar!

Rubem Alves (1933-2014)

Crônica: Quero gritar!
O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autori zação escrita do próprio autor




Quando o Titanic estava afundando, quando já se sabia que não haveria lugar para todos nos botes salva-vidas, quando era certo que aqueles que ficavam no navio estavam destinados a morrer, quando nada restava para ser feito, os músicos se reuniram, e com a tranqüilidade daqueles que aceitam a morte inevitável fizeram o seu último gesto: tocaram um hino religioso: “Mais junto ó Deus, a ti! Mais junto a ti./ Inda que seja a dor/ que me una a ti...” 

Essa cena bela-triste tem estado passeando pela minha imaginação. Me vejo como um dos músicos. Eu não sei fazer música com instrumentos mas sei fazer música com palavras. Escrevo minhas crônicas, sinto alegria no que faço e sei que muita gente gosta. Mas o meu sentimento é da inutilidade do que escrevo. O Vinícius sentia o mesmo e se referia a “... essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa piedade de sua inútil poesia, de sua força inútil...” O Titanic está afundando e a minha música soa como uma beleza que perdeu a esperança, beleza de naufrágio. 

O nome dela era Altair Pollentini, casada, professora de matemática da UNESP-Rio Claro, falava pouco, parecia envergonhada mas era um trator para trabalhar, morava em Mogi-Mirim. Naquela manhã disse adeus ao marido, iria participar da banca de defesa de tese de uma orientanda sua. Mas, contrariando os seus hábitos, ela não compareceu à defesa. Seu corpo foi encontrado no dia seguinte, nú, no porta-malas do seu carro. Na sua conta bancária tinha havido um saque de R$600,00. 

Aquela seria uma noite alegre, música, cerveja, papo descontraído, pensamento vagabundo, namoros, amigos, num bar conhecido. Mas, de repente, em meio à alegria, os rostos de maldade dos bandidos, o tiroteio, o sangue, as pessoas mortas. 

Era um dia como os outros. O chuveiro quente, o café da manhã com frutas. Disseram “até logo” aos filhos. De noite estariam juntos de novo. Marido e mulher saiam para trabalhar. De repente, na rua pacata, o bandido tentando arrancar a bolsa da mão da mulher que resiste, um tiro na mulher, dois tiros na cabeça do marido. 

Quando a violência atinge pessoas desconhecidas a gente tem a ilusão de que aquilo está muito longe, que seremos poupados. Mas aí a violência chega muito próximo. Amigos meus já foram assassinados, pessoas com quem eu conversava e que queriam viver. O Pedro Zaghi, parente, professor, voltava para casa depois do trabalho. Era noite. E então, de repente (sempre de repente, quando não se espera) naquele curto espaço de tempo entre parar o carro e abrir o portão, do escuro surge o assaltante. Um tiro e o Pedro estava morto. O Flávio era jovem, 23 anos, estudava psicologia, escrevia poesia. Saiu à noite para as coisas que os jovens gostam de fazer. Nunca mais voltou. Foi sequestrado e assassinado com um tiro pelas costas. Outro amigo era um modesto empregado de uma farmácia: no meio do dia claro, às portas da sua casa, assassinado. Minha filha já foi sequestrada. Ela e um amigo. Os bandidos queriam sacar dinheiro de bancos. Mas eles não tinham cartões. Ficaram os bandidos, então, com o problema de se desfazer dos dois. E enquanto o carro entrava por lugares desconhecidos, minha filha conta que o bandido no banco à direita girava o tambor do revólver e repetia para sua cúmplice-mulher, que dirigia o carro: “Temos de despachar esses dois...” Felizmente eles só foram abandonados numa estrada erma. 

Os ricos pensam encontrar segurança fechando-se em condomínios e edifícios-fortaleza. Mas é inútil. Os bandidos, hoje, não são criminosos isolados, que têm medo de seguranças. São bandos organizados de forma militar, com armamento militar. Os guardas à entrada dos edifícios e condomínios têm apenas uma função decorativa. Úteis para impedir a entrada de bêbados, pedintes e vendedores. Mas impotentes diante de metralhadoras. Você, que se sente seguro no seu condomínio e no seu edifício: abandone a sua segurança. Nada lhe aconteceu ainda porque os bandidos ainda não escolheram o seu condomínio ou edifício como alvo de ataque. Além do que, você sabe que frequentemente são os seguranças que planejam os eventos criminosos. 

Vivemos sob a égide do medo. Só os tolos se sentem seguros. O simples fato de abrir um portão e sair à rua já se tornou uma experiência de medo. Nunca se sabe o que nos aguarda. Quando saio do meu trabalho, à noite, examino a rua cuidadosamente antes de me aventurar. Olho para as árvores. Procuro sombras suspeitas. Verifico se não há carros parados nas proximidades. Cada passante me assusta. Saio rapidamente, com a chave do carro na mão. Os filhos saem à noite: quem garante que eles voltarão? Cada demora é motivo de sobressalto. E nem os velhos são poupados... 

As sociedades sempre conviveram com o crime. Mas o crime não colocava em questão a ordem social. Na verdade, eles fortaleciam a ordem social. A identificação e procura dos criminosos (entram em ação os servos da Lei, detetives e policiais), os rituais de julgamento (entram em ação advogados, juizes, juri), e punição dos bandidos (entram em ação penitenciarias, carrascos. forcas e guilhotinas) eram confirmações do triunfo da ordem sobre a desordem. E sobre esses crimes e criminosos se fez a deliciosa literatura dos Sherlock Holmes e Hérculos Poirot. Os mistérios do crime eram literatura para “relax”. Os crimes antigos jamais poderiam ser classificados como “subversão”. Os criminosos não eram subversivos. Eles não tinham a intenção de alterar a ordem social. Só queriam fazer um ato proibido. Mas hoje a situação é diferente. Não lidamos mais com os criminosos tradicionais, indivíduos isolados que matavam por amor, por fúria repentina, para receber a herança, por vingança política. Santo Agostinho observou que quando os criminosos se organizam em bandos, dominam territórios e estabelecem leis internas para a sua existência, eles deixam de ser criminosos. Transformam-se numa realidade política. Passam a ser “estados”. Como “estados” o seu propósito é estabelecer uma lei diferente daquela que oficialmente rege a sociedade. E ele acrescenta: transformam-se em estados não porque suas ações ficaram justas mas porque aos seus crimes se acrescentou a impunidade. 

A situação da violência, no Brasil é, assim, uma situação de subversão da ordem. E quando isso acontece estabelece-se uma situação de guerra. Vocês ainda não se deram conta de que estamos em guerra, de que o país foi invadido? Os militares, nos idos de 64, julgaram que a ordem social no Brasil estava em perigo, em decorrência da ação dos chamados “subversivos”. A partir disso estabeleceram uma operação de guerra que terminou com a destruição dos ditos subversivos. Pergunto: Não se apercebem eles que estamos em guerra? Não se apercebem que o crime não é mais crime mas ameaça à ordem social? Os inimigos não estão fora, além das fronteiras. E a idologia não é a comunista, mas a capitalista. Pois os motivos da violência atual são inegavelmente capitalistas: o supremo valor do lucro. 

Fico perplexo com a nossa inércia, minha, sua. Contemplamos o espetáculo e não sabemos o que fazer. Vamos vivendo, na esperança de que a nossa vez não chegue. Chegará. Pois a violência se alastra como um câncer. 

Nos tempos das “Diretas Já” o povo foi para as ruas, fez comícios, cantou, bateu panelas. O país inteiro clamava pelo fim da ditadura. Penso se não seria necessário que se estabelecesse um movimento semelhante - não de canto e de alegria, mas de pranto e tristeza. Que se decrete um Dia Nacional de Pranto! Que os carros tenham fitas negras nas antenas! Que haja silêncio! Que as emissoras de rádio toquem músicas fúnebres! Que as bandeiras sejam hasteadas a meio pau! Que os sinos das igrejas repiquem o repique de funerais! Que haja procissões e comícios para que o povo possa chorar, em conjunto, a sua desgraça. “Um miserere cantado em coro por uma multidão açoitada apelo destino, vale tanto quanto uma filosofia! Não basta curar a peste; há de sabê-la chorar!” (Unamuno) 

O Brasil está afundando. Não quero tocar música. Quero mesmo é gritar.