Crônica: Sobre o crime I
Rubem Alves (1933-2014)

Nicolò Machiavelli era um homem do povo, comum. A despeito disto teve a ousadia de dar lições de política ao príncipe Lorenzo di Piero de Medici. Consciente do despropósito da sua presunção, ele se explica e se desculpa na “Dedicatória” com que seu livro O Príncipe se inicia. “Da mesma forma como os que pintam cenários se colocam abaixo, na planície, a fim de contemplar as montanhas e os lugares altos, e a fim de contemplar as planícies eles se colocam no alto das montanhas, assim é preciso ser um príncipe para conhecer a natureza do povo, e é necessário ser do povo para se conhecer a natureza dos príncipes.” Em outras palavras: para se ver bem é preciso estar distante e de fora. Animado pelas palavras de Machiavelli criei coragem para dar a público algumas anotações que fiz sobre um assunto sobre o qual não tenho competência alguma, quer acadêmica, quer prática. Credenciados a falar sobre o que vou escrever, por competência científica e prática, são os advogados e os policiais. Mas, como o exercício de pensar e de comunicar o pensamento é um direito dado a todos os cidadãos, ouso falar sobre o crime, com olhos que olham de longe. Houve um tempo quando o crime não perturbava os meus pensamentos. Hoje ele me ameaça a cada momento. O crime está à espreita. Guiando na marginal de Pinheiros, em São Paulo, vi um outdoor luminoso gigantesco: “Você pode ser o próximo a ser assassinado”. O Toninho guiava o seu carro, como sempre fizera, despreocupado. Não imaginava que o crime estava à sua espera. Se tivesse imaginado teria escolhido um outro caminho. Tenho medo. Nunca sei onde o crime me espera. Vou escrever meus pensamentos sobre o crime porque quero entender. Escrevo maquiavelicamente, olhando de longe. Escrevo na esperança de que outros me ajudem a pensar. Minhas ideias são meros andaimes. Peço perdão pelo meu estilo. Ao me por a pensar sobre assunto tão medonho, o estilo “crônica” que tanto amo me abandonou. As ideias me vieram como me vinham quando eu dava aulas: secas e curtas. Não escrevo para dar prazer. Escrevo convidando o leitor a pensar seus próprios pensamentos. Abaixo está aquilo que seria meu plano de aula. Tópicos a serem motivo de meditação.
1. Dois, apenas dois, são os objetos que o coração humano deseja: o Amor e o Poder. Amor e Poder: os dois são coisas boas. É entre eles que a vida acontece. O Amor me faz sonhar com um jardim. O Poder faz possível plantar o jardim. Sem Amor não há jardim. Sem Poder não há jardim.
2. Há crimes motivados pelo Amor. Há crimes motivados pelo Poder.
3. Crime é usar um caminho proibido para se chegar àquilo que o coração humano deseja.
4. O que caracteriza o crime não é o mal que ele causa. O que caracteriza o crime é o caminho que é seguido. Sobre o assunto, Charles Chaplin fez um filme notável, Monsieur Verdoux. M. Verdoux era um modesto caixeiro viajante, apaixonado por sua esposa paralítica, cujo tratamento requeria considerável quantidade de dinheiro. A vida de sua esposa lhe era o bem supremo do amor. Não lhe saía da memória o juramento feito por ocasião do seu casamento, de que cuidaria dela na saúde e na enfermidade. Infelizmente, entretanto, os ganhos de M. Verdoux no exercício de sua profissão eram insuficientes para cobrir os gastos médicos requeridos pela enfermidade de sua adorada esposa. Era necessário, portanto, que ele aumentasse os seus ganhos – um desejo perfeitamente legítimo. Imaginou, então, um estratagema: procuraria velhinhas ricas carentes, viúvas ou solteironas, que buscavam o conforto de uma companhia masculina. Casar-se-ia com elas, mata-las-ia e se apropriaria da sua herança. Desta forma estariam garantidos os recursos necessários para os cuidados com sua adorada companheira. E o seu juramento sagrado seria cumprido. E foi o que ele começou a fazer de forma sistemática. Paralelamente corria uma outra história. Era tempo de guerra. Um poderoso empresário era dono de uma fábrica de canhões. Não me recordo o seu nome. Para simplificar nossa narrativa, digamos que ele se chamava Monsieur Argent. Os canhões produzidos pela fábrica de M. Argent matavam diariamente soldados, homens, crianças, velhos e inúmeras velhinhas carentes, em número imensamente maior que aquelas que M. Verdoux matava. Notem os motivos dos dois: M. Verdoux matava por amor. M. Argent fabricava canhões – que matavam! – por dinheiro. Notem o quatum de mortes produzidas: M. Verdoux matou três, talvez quatro velhinhas. M. Argent, com seus canhões, matou milhares. Final da história: M. Verdoux é preso, condenado e guilhotinado. M. Argent, ao contrário, em virtude de sua contribuição para a guerra, recebeu as maiores honrarias de estado e foi condecorado. Como disse no início: não é o mal produzido que caracteriza o crime. M. Argent causou muito mais mal que M. Verdoux. O que caracteriza o crime é o caminho seguido.
5. Quem define os caminhos permitidos e os caminhos proibidos? É o Estado. Os caminhos permitidos e os caminhos proibidos, assim, variam com as variações do Estado. Num Estado escravagista era permitido, aos donos, açoitar e matar seus escravos. O Estado Norte Americano determinou, por meio da chamada “Lei Seca”, que a produção, comércio e consumo de bebidas alcoólicas era crime. Houve certos Estados que classificaram o homossexualismo como crime. Em Estados católicos era crime punido com morte professar uma religião diferente da religião oficial. Como no Taleban. Miguel Serveto e Giordano Brunno, cientistas humanistas, foram queimados pelo crime de terem ideias diferentes das ideias oficiais. Galileu escapou por pouco...
6. Há 2 tipos de crimes: crimes de amor e crimes de poder. O detetive, em busca do criminoso, fará bem em seguir o velho conselho “Cherchez l‘argent, cherchez la femme...” “Procure o dinheiro, procure a mulher...” É claro que esse ditado se fez numa sociedade machista, onde só os homens cometiam crimes de amor. Ou, talvez, numa sociedade em que as mulheres eram mais sábias que os homens: elas não matavam por amor por saber que não vale a pena...
7. Os crimes de amor sempre existiram e sempre existirão. Sem os crimes de amor a literatura e a arte perderiam um dos seus motivos mais comoventes. As “Mil e uma noites “perderiam seu fio condutor. As óperas perderiam algumas das suas mais pungentes realizações. E seriam perdidas também as músicas caipiras, aquelas de antigamente: o caboclo que mata a caboclinha que o trocou por um conquistador rico da cidade...
8. Os crimes de amor resultam de perturbações individuais de emoções. É sempre um apaixonado solitário que comete o crime. Não se pode “formar quadrilha” para cometer crimes de amor. Quando se forma uma quadrilha para se cometer crimes sabe-se que um procedimento racional está em andamento. Mas o crime de amor é sempre irracional. Resulta de uma erupção de sentimentos que fugiram ao controle da razão. Essa é a razão por que não é possível fazer uma sociologia dos crimes de amor. Sobre os crimes de amor faz-se literatura e psicanálise.
9. O corpo é um albergue. Nele moram os mais diferentes hóspedes. Um deles é o apaixonado perturbado com ímpetos assassinos. Cometido o crime ele se retira da cena, esconde-se no seu quarto e se tranca. O dono do albergue, racional, que havia sido expulso pelo apaixonado perturbado, volta então – ele estava “fora de si” – e tem de lidar com a dor da culpa e a dor da perda. O criminoso por amor, passada a erupção de sentimentos, se arrepende sempre. Ele continua a ser um ser moral.
10. É possível que a lei, ao punir o criminoso, esteja punindo o inocente. Não foi o dono do albergue que cometeu o crime. Foi o “outro”, que mora no mesmo albergue. Inocente e criminoso vivem no mesmo corpo.
11. Os crimes de amor se assemelham a uma amputação – um momento de distração e a serra amputa um dedo. É um acontecimento individual, doloroso, localizado, completo. Cicatriza, deixando marcas. Mas o corpo não é ameaçado. Os crimes de poder são totalmente distintos. Assemelham-se ao câncer. Têm a configuração de uma rede que não para de crescer. Elimina-se um tumor aqui, mas as metástases aparecem em lugares distantes. Sendo uma rede, organizam-se social e politicamente: bandos, gangues, quadrilhas, máfias. Apossam-se de territórios e sobre eles estabelecem suas próprias leis, transformando-se assim em estados. Navegam em todos os canais de comunicação, embarcados no dinheiro. Os meios de circulação de dinheiro são os meios de circulação dos crimes de poder. Onde houver dinheiro ali haverá crimes de poder. Porque dinheiro e poder são a mesma coisa. Agora, num mundo interligado pela globalização da circulação do dinheiro, os crimes de poder ganham o status de “empresa transnacional”. Os crimes de poder têm também a sua ONU, melhor dizendo, OCU, Organização do Crime Unido, que funciona com muito mais eficiência que a Organização das Nações Unidas. Constituem-se como uma potência internacional, um Estado Internacional, com filiais em todos os países. Os assassinatos em favelas, decorrentes de disputas entre traficantes, são nada mais que manifestações da rede mundial de circulação de riqueza ligada ao tráfico de drogas.
12. Os crimes de poder, hoje, são muito mais que casos policiais. Eles se organizam como um Estado paralelo ao Estado, colocando em jogo aquilo que, em linguagem militar, tem o nome de “segurança nacional”. O perigo não está além das fronteiras geográficas. O perigo se encontra dentro do território nacional.