Efusivamente bela
Luiz Gonzaga Fenelon Negrinho (de Passos/MG)

De fato, apaixonante encanto para os olhos e não menos tormento para o coração. Como descreveria o babilônico Zadig, numa das histórias do imortal escritor da literatura universal Voltaire, na origem, François-Marie Arouet.
Basta fazer-se presente para que a festa reine no ar. Esse o desenho. No prazenteiro, sangues hormonais masculinos fervilham em tardes quentes após chuvas de verão. Dessas de molhar bobo. Na lembrança, tempo abafadiço de estourar mamonas em terrenos baldios.
Na vertente humana da beleza em destaque, sentido preciso ou abrangente, possibilita ser mais atraente do que propriamente bonita em si e por si. Esse o charme.
Postura e maneira de andar, não se dá conta de que é avaliada com o rigor de olhos por terceiros. Pelos senhores dos anéis, a visível argola no dedo anelar é indicativo de sério compromisso com algum sortudo. E que, por certo, acredita-se, não aprova nenhum conflito de interesses. Ou, quem sabe, e não se descarta, sente orgulho e vaidade no privilégio da escolha e obtenção da obra-prima da natureza humana.
Melhor pensando, beleza não tem dono. Como de resto, não há como controlar a situação. Na meninice, tempo em que se amarrava cachorro com linguiça, falava-se que belo era para ser visto, notado e apreciado. Mas, com todo o cuidado. Sem essa de tanger e molestar. Dizia-se, no popular: “Ver com os olhos e lamber com a testa”.
Atualmente, se mexer e fazer gracinha no jogo da inconveniência, vira caso de polícia, transgressão. Dá assédio. Não encontra respaldo nos bons costumes e nem nas leis dominantes. Dá encrenca das brabas.
De boa sugestão, não se deve arriscar a perigosos mal-entendidos. Sem essa de “você é a nora que minha mãe pediu”, “docinho apreciado da minha compota”, “a cereja do bolo” etc. Furada de tempo das cavernas. Não cola.
Ah, mas olhar pode. A porteira permite. Se passa boiada, por que olhos não? Então, ela desce do veículo preto. Desses do tipo importado. Vestida a caráter, dirige-se à academia nas proximidades. O mundo para. Apruma-se com sentido à malhação. Faz a manhã tornar-se alegre, radiante, mesmo no remanso da chuva tépida. E a porta do paraíso parece abrir-se para um anjo passar numa passarela sem conspícuos alardes. Ao fazê-lo, deixa o aroma do amor no ar.
De imediato, pensa-se na figura mítica de um ser em estado de graça. Nirvana. Se tomarmos o ente angelical como elo divino, não há como estimular mal algum. Processo de ver o belo no viés escultural. Aprazível quadro. Desenho de rico teor. A arte em si. Coisas desse tipo. A esse respeito, ainda lembro minha mãe Julieta dizer sobre tudo aquilo que a extasiava: “Parece pintura”.
Com efeito, não há dano algum ou desonra na condução apreciativa da mulher de enigmático enlevo. Passável e perdoável. Pelo contrário, forma e maneira de dignificar o poder harmônico da criação.
Nisso falando, bem a propósito – em clichezão – ouço dizer que não existe mulher feia. Existem as bem ou mal cuidadas. Incluam-se, nos atributos, o caráter e a personalidade, os quais devem ser levados em conta e na conta do tempo que maltrata inapelavelmente o bolso e a bolsa para a extensão da beleza externa.
Se a bela desconhecida, responsável por desavisados e inocentes suspiros, cuida da beleza ou manutenção do físico, na consideração dos limites o bom senso, há que se dar e impor sentido que outras podem fazer o mesmo. Não fazem. Por esse ou aquele motivo.
O que me deixa intrigado é saber se com as outras podem surtir o mesmo efeito como sói ocorrer com a mulher do carro preto da academia. Pensando bem. Se a academia de Platão, em sublimação, objetivava o poder transformador do amor e do bem, com certeza pode-se, sim, zelar pela beleza universal.
A bela de rosto sereno e plácido que passa e sentidos ficam, sem o menor esforço, transforma fragmentos de dias na magia amena de olhos que veem e vão. E faz a vida seguir seu fluxo normal, sem a precisão de se pagar pedágio, impostos, taxas e nenhuma contribuição de melhoria.
Não me parece fugir ao juízo realçar propriedades de uma rainha de gloriosas e primorosas manhãs. Nem Voltaire a descreveria com desenvoltura e talento, benevolência e lirismo plenos. E se deve fazer justiça à composição do estado do que efetivamente é belo. Mesmo porque o amor vai continuar espalhando fragrâncias na conformidade de exauridos e assumidos sentidos.
O amor está no ar, na poesia de cada dia e no coração dos que amam com fidelidade, com ou sem frenesi. E quando a mulher do carro preto passa, ah, na voz do poeta de Ipanema, “tudo se enche de graça”. Pensando bem, qual é mesmo sua graça? Assim como o amor e o lirismo, em lacuna, há de ficar no ar.