Opinião: A hora da dentadura
Ana Pamplona (de Formiga)

— Doutor, eu trouxe a Carolina aqui, porque já passou da hora dela colocar a dentadura — explicava a mãe da paciente sentada na cadeira odontológica de Toletinho — ela já está com 15 anos e sente muitas dores nos dentes.
Dr. Joaquim Bartolomeu Amâncio de Oliveira, o Toletinho, piscou várias vezes após esfregar os olhos com as mãos enluvadas. Sua cadeira de dentista já presenciara muitos acontecimentos bizarros naquele consultório, mas, como este, ainda não. Primeira vez, em muitos anos de profissão — e eram muitos — que ouvia tal absurdo, em pleno século 21. Conhecia o filme “A hora do pesadelo I e II”, “A hora do Conto”, o livro “A hora da estrela” da Lispector, e até, “A hora e a vez de Augusto Matraga”, conto de Guimarães Rosa. Mas, a novela “A hora da dentadura”, não conhecia.
Tornou a examinar atentamente a jovem paciente. Todos os dentes estavam presentes. Alguns hígidos, ou seja, sem presença de cárie, alguns cariados, outros, muito cariados, outros bastante comprometidos, porém, talvez, recuperáveis. Praticamente, nenhum precisava ser retirado. Matutou um instante e respondeu:
— D. Mariinha, me explica esta história de passou da hora dela colocar a dentadura, por favor.
— Doutor, lá em casa, todos nós usamos dentadura. Eu, o Geraldinho meu marido, mais os nossos quatro rapazes. Só falta a Carolina, a caçula — disse apontando a menina assustada.
— Ah sim, mas o fato de toda a família usar dentadura, não significa que a Carolina precise também. Os dentes são órgãos que fazem parte do nosso corpo e têm várias funções importantes, além do mais, é um “pecado” tirar os dentes de uma garota tão jovem!
— Ah, precisa, doutor. Usar dentadura é muito melhor do que ter dentes, muito mais prático e mais barato. Os dentes da gente estragam, doem, escurecem, são difíceis para limpar, fazem a boca feder, além do mais a gente gasta muito dinheiro com eles. Com a dentadura a gente gasta de uma vez e pronto. Sem contar, que, na roça é tudo mais difícil, doutor. O dente dói e a gente tem que sair correndo atrás de atendimento, é muito custoso. Acabou, vai tirar e pronto...
— D. Mariinha, a senhora, como mãe de Carolina, não deveria ter deixado a situação dos dentes dela chegar nesse ponto... Veja bem, os dentes da menina estão bons, necessitam tratamento urgente, mas não significa que precisa extraí-los todos, somente os que estiverem indicados para isso. Consigo recuperar praticamente todos e...
— Não doutor — interrompeu a matrona — não me venha com essa conversa de dentista que quer ganhar dinheiro em cima de gente pobre. Não é culpa minha se os dentes dela chegaram nessa situação. Eu não tinha o que fazer, ela nunca gostou de escovar dente. Além do mais, já está resolvido, Carolina vai arrancar os todos os dentes, estragados ou não e colocar a bênção da dentadura. Ela vai participar do concurso Miss Sertaneja lá na roça e vai ganhar!
A essa altura, Toletinho tinha quase certeza que havia perdido o jogo. Olhou para Lucília, sua auxiliar, pedindo socorro. Ela abaixou os olhos, vencida. Isso era mau sinal, afinal, a Luh — era como a chamava — era boa na argumentação e por muitas vezes o salvou de situações de stress. Mesmo assim, tentou uma última estratégia. Virando-se para a paciente, disse em tom sério:
— Carolina, tenho filha quase da sua idade, sei o que os dentes representam para a saúde de todos nós, mas, especialmente para as moças bonitas. Ajude-me a salvar os seus! Convença sua mãe, de que é a sua saúde que está em jogo, que você quer manter seus dentes na boca, lindos e saudáveis! — disse a ela em tom dramático.
A menina estava visivelmente assustada e com cara de choro. Permaneceu calada. Toletinho aproveitou a situação e atacou novamente:
— Menina, pensa bem... você, moça linda, quase miss Sertaneja, tirando sua dentadura todas as noites para dormir! Como será, quando seu namorado chegar em seu quarto e se deparar um copo cheio de água sorrindo para ele ao lado da cama?
Agora sim, a menina arregalou os olhos e parecia que ele tinha vencido. Nunca imaginou que aquilo iria gerar tanta discussão. Além do mais, o dentista tinha razão. Nenhuma de suas colegas da escola usavam dentadura. Entendia ambas as posições dos dois oponentes. Pensou um instante e olhou para a mãe. Esta devolveu-lhe o olhar carrancudo, como a dizer: “lembre-se do nosso trato”. Então, a garota respondeu meio insegura:
— Acho que o senhor tem razão, doutor, mas, parece que está mesmo na hora da dentadura, pois minha mãe prometeu-me um iPhone 15 de presente...
Então, a história terminou com Toletinho dizendo gentilmente à D. Mariinha, que era a hora de ir embora.