Opinião: A indústria lítica formiguense

Anísio Cláudio Rios Fonseca (de Formiga/MG)

Opinião: A indústria lítica formiguense
Anísio Cláudio Rios Fonseca é professor do Unifor-MG, coordenador do laboratório de mineralogia e especia lista em Solos e Meio-Ambiente




 Em diversas oportunidades pude ouvir que Formiga é a cidade do “já teve”. Ouvi isto em comícios, discursos, reportagens e em conversas com os Formiguenses mais idosos. Na minha infância, quando brincávamos no areão existente onde é a rodoviária, me lembro de termos achado diversas cabeças de bonecas espalhadas pela areia, prováveis descartes da antiga fábrica de bonecas que havia aqui. Foi algo bem bizarro... 

Realmente é muito interessante saber o que já tivemos por aqui, com ênfase nas atividades fabris. Quero aproveitar este espaço para falar de uma indústria que tivemos aqui no município e que nenhum de nós viu em qualquer época da existência da cidade. Trata-se da indústria lítica Formiguense, montada pelos primeiros habitantes destas plagas e que produziu belíssimos artefatos líticos para aplicações diversas. A principal característica destes homens neolíticos foi a sua fixação em locais específicos, onde ele pôde plantar, pescar e caçar. Todas estas atividades demandavam instrumentos que tinham que ser confeccionados por eles para que fosse possível executar suas tarefas com sucesso. O conhecimento do material adequado para se trabalhar as peças era passado através de gerações e muitas vezes ele tinha que ser recolhido em locais distantes, ou talvez trocado com outras tribos.

Embora praticamente não haja pesquisas arqueológicas em nosso município, artefatos são colhidos em grande quantidade por aqui (além de Pains, Arcos, Iguatama, etc...). Entre os artefatos líticos mais encontradiços figuram as conhecidas machadinhas, as quais eram utilizadas com ou sem cabo. Há também um tipo de machado chamado de semilunar, cuja forma lembra uma âncora e que provavelmente era utilizado em combates, sendo abandonado ao lado do morto. É uma obra de arte, com fino acabamento. Mãos –de- pilão de diversos tamanhos e utilidades também são encontradas, bem como instrumentos como picaretas, enxós, riscadores e outros. A grande característica destes artefatos é que são todos polidos e feitos de diabásio ou rochas afins. O diabásio é uma rocha escura, do grupo do basalto e abundante no nosso município, originando solos vermelhos muito procurados na agricultura. Sua granulação fina e homogênea aliada à suas características mecânicas confere aos artefatos bastante resistência à percussão e ao desgaste. Testes feitos pelo departamento de arqueologia da UFMG demonstraram que o tempo gasto para se fazer um artefato em diabásio quase cinco vezes maior que o tempo gasto para fazer a mesma peça em rocha granítica.

No campo de instrumentos cortantes e armas encontramos em certos locais do município pontas de flecha, raspadores e instrumentos cortantes confeccionados em quartzo e sílex, metodicamente lascados com apurada técnica. As pontas de flecha eram primores da tecnologia lítica e exigiam uma técnica apurada dos seus artífices para produzir uma peça como a que ilustra este artigo. Seus bordos eram totalmente lascados, expondo um fio cortante muito agudo. Ao atingir seus alvos normalmente elas se quebravam, causando posterior infecção nos sobreviventes (animais ou homens). Tanto o quartzo como o sílex eram obtidos por aqui mesmo, como por exemplo na comunidade rural da Vendinha. Ao ser lascado, o sílex exibe um bordo cortante que, em alguns casos, é mais agudo que o de alguns bisturis! O sílex é composto de sílica oriunda de precipitação química/física em ambiente marinho ou lacustre, normalmente de restos de carapaças silícicas opalinas de alguns organismos. 

É interessante notar que muitos dos artefatos encontrados possuem diferentes graus de acabamento, o que denota um maior ou menor envolvimento pessoal por parte de quem os confeccionou. Infelizmente, segundo a revista arqueológica Canindé, quase nenhuma das tribos conhecidas no país manteve esta indústria funcionando após o contato com o conquistador europeu. Machados e facões de ferro tomaram o lugar das antigas ferramentas de pedra e delas só resta os testemunhos esparsos, contidos em sítios arqueológicos intactos ou não. No nosso caso, encontramos estes artefatos em terras já maculadas pela agropecuária, juntamente com igaçabas, panelas de barro, apitos de barro e outros artefatos que resistiram às intempéries e à ação do homem, provando assim que produtos de qualidade confeccionados entre 500-7.000 anos (provavelmente) testemunham heroicamente a presença de nossas primeiras indústrias, legítimas ancestrais do nosso artesanato tão conhecido pelo Brasil afora.