Opinião: Acreditar para poder decepcionar
Lúcia Helena Fiúza (de Belo Horizonte)

Meu pai era um sábio. Jair Fiúza da Cunha era o seu nome, mas ninguém sabia, desde quando trabalhava na Rede Ferroviária, ele era conhecido como Seu Coló.
Papai nasceu em Iguatama em 1920 e faleceu em Belo Horizonte em 2010, mas morou mais de 50 em Formiga. Não foi à segunda guerra por causa de um defeito na perna, a esquerda era menor que a direita. Brincava dizendo que foi salvo por dois centímetros tirados por Deus.
Em suas frases geniais e ensinamentos repletos de sentido, papai dizia que a gente deve acreditar em todas as pessoas, levar como verdade e seriedade tudo o que dizem e que todo mundo é muito bem intencionado. Falava para mim e meus irmãos, Cecília e Antônio Maria, que deveríamos sempre manter acesa a chama que daria motivo para se decepcionar depois. “Se a gente viver desconfiando e duvidando dos outros, como é que a gente vai se decepcionar com elas?”.
Passamos a vida ouvindo as decepções de papai. Contava que um dos grandes amigos que teve foi um padeiro que tinha o curioso apelido de Bacalhau. Ele aplaudia tudo que viesse da boca do tal Bacalhau, até que um dia o viu entrando na Igreja Presbiteriana. Seu Coló, que era da Irmandade do Santíssimo Sacramento, comentava sobre a fé católica com o padeiro e não admitiu vê-lo virando um protestante. Muito sem graça, Seu Bacalhau foi explicar que estava entregando pão sovado que o reverendo encomendou, mas não adiantou.
Teve uma vez que papai viajou com dois irmãos que eram professores: o Agnelo e o Zé Guimarães, ambos Fonseca. Foram juntos para Belo Horizonte em uma exposição, que não me lembro de quê, no Parque das Mangabeiras. Papai foi por causa da Rede e a Prefeitura mandou um carro levar os três. Quando foi na hora de voltar, papai se perdeu e ficou para trás. No outro dia, ele ficou sabendo que os dois professores disseram ao motorista que não precisava esperar. Não deu outra: quando os encontrou tirou satisfações sem economizar nos decibéis
Uma outra grande decepção, talvez a maior, foi com relação a um conhecido juiz de Direito que depois virou desembargador daqueles de dar entrevista em televisão. Ele morava em uma rua próxima à Praça São Vicente Férrer e gostava muito de conversar com papai, com o professor Carlos Leite e com o Seu Joaquim, um simpático barbeiro que tinha um salão na Rua Seis de Junho. Os três passavam horas e horas falando de todos os assuntos, de política a futebol. Papai os admirava e os dizia como os principais amigos na cidade. Faziam rodinhas na Praça Getúlio Vargas e caminhavam juntos subindo a Rua Silviano Brandão na hora do almoço.
Era o dia 31 de março de 1964 e o Brasil se viu vítima de um duro golpe militar. Democrata e admirador assumido do presidente deposto João Goulart e de seu cunhado Leonel Brizola, papai fazia parte de um Grupo dos Onze (quem não conhece, é só ir ao Wikipédi: Os chamados Grupos de Onze Companheiros, simplificadamente, Grupos dos Onze ou Gr-11, e também conhecidos como Comandos Nacionalistas foram concebidos por Leonel Brizola no fim de 1963. Tomando por base a formação de um time de futebol, imagem de fácil assimilação e apelo popular, Brizola pregava a organização de pequenas células – cada uma composta de onze cidadãos, em todo o território nacional – que poderiam ser mobilizadas sob seu comando. Era um grupo de esquerda, porém não socialista, era nacionalista e apoiava abertamente as políticas de base de Jango, dentro do contexto de radicalização política do período histórico).
Cabreiro e desolado, papai foi à casa do juiz buscar mais notícias. Quando virou a rua, ele viu o magistrado saindo de carro comemorando e esgoelando a buzina do carro. Uma bandeira do Brasil amarrada a um cabo de vassoura completava a cena. Papai continuou amigo de uma vida inteira de Seu Joaquim e do professor Carlos, mas nunca mais teve papo com o juiz.
De fato, Seu Coló sabia das coisas. Se a gente não tiver motivo para decepcionar, se a gente forçar estar distante de tudo e de todos, a gente não vive. Eu, por exemplo, tinha admiração por uma pessoa que esteve ocupando cadeira na Câmara Municipal, por um advogado que fez um inventário da família e por dois médicos até então de muita confiança. Eu vi os quatro batendo continência porta da Tiro de Guerra e pedindo um novo golpe militar no Brasil. Na hora, lembrei-me com saudades do meu querido, amado e sábio pai.