Opinião: Assalto

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: Assalto
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Fanny dormia pesado ao lado do berço dourado de Maria Eugênia. Seu filho Bento também, desmaiado pela canseira do dia passado na piscina e no parque, ressonava tranquilamente junto dela, na cama de solteiro. 

Naquele dia, antes de se deitar, enquanto tomava um chá na cozinha do apartamento sofisticado da patroa — ela achava chique tomar chá — refletia sobre as coisas importantes da vida. Para alguns, coisas importantes seria passar um fim de semana num iate, viajar para a Europa, monitorar os gráficos da bolsa de valores para administrar seus milhões, ou até fazer uma plástica na barriga. Para outros, era estar num emprego de babá. Esse era o caso dela.

Coisas importantes eram todas voltadas para a sua prioridade número um: sustentar e manter o filho Bento saudável e bem alimentado, um belo e rechonchudo bebê de 8 meses, já engatinhando. Mãe solo, depois de passar por muitas dificuldades e vários empregos nos quais não dera certo, estava feliz com a nova situação. Conhecera o porteiro daquele prédio, o Reginaldo, e ele a indicara para trabalhar como babá da bebê Maria Eugênia, filha de D. Denise, pessoa muito chique, com um sobrenome coreano importante, herdado de um marido importante, que, além de lhe pagar um ótimo salário, deixava a ela e ao filho morarem com a família, a fim de tomar conta em tempo integral da linda bebezinha de olhos puxados. 

D. Denise e o patrão gostavam muito dela e de Bento. As coisas estavam indo tão bem, que Fanny chagava a desconfiar do seu destino, até ali tão caótico. “Será que ela merecia toda aquela bênção? — Casa, comida, roupa lavada, salário, seu amado filho junto dela e ainda por cima, respeito?” — refletia a moça com a xícara na mão. Reginaldo, seu anjo da guarda lhe dizia: 

— Fanny Alexandra, largue de ser boba! Do jeito que fala parece até que é amaldiçoada! Se pensa mesmo assim, então mude essa conversa para mudar seu destino! 

“Está bem, Reginaldo, mudando: sou feliz, sou feliz, sou feliz...” Então, com toda aquela felicidade estampada num sorrisinho apertado e cheio de covinhas, terminou seu chá chique e foi dormir.

 Apagou rapidamente. Um sono pesado, sem sonhos, nem pesadelos, mas a certa altura, sentiu “presenças” na casa. Os olhos estavam pesados como chumbo, não conseguia abri-los. Era como quando se tem um pesadelo terrível, e não se consegue acordar. Ouvia ruídos quase imperceptíveis e vozes sussurrando. Algo como “vá pegar as joias da madame”; “muita atenção ao segredo do cofre”; “há alguém na casa?”; “vá verificar”...  Neste ponto Fanny acordou. Deitada de bruços estava, de bruços continuou com a cabeça virada para o berço. Bento do seu lado oposto. Abriu os olhos com dificuldade. O quarto estava escuro, a luzinha tênue do abajur da menina, atrás do berço não chegava a iluminar o ambiente. Ouviu um barulho discreto na fechadura da porta. “Será que D. Denise chegou? Mas sem avisar?” — perguntava-se. A resposta veio a seguir. A porta abriu e ela viu de relance um homem grande, mãos enluvadas, roupa escura, gorro, mascarado e fortemente armado. Ela fechou os olhos o mais rápido que pôde. Ele entrou, podia sentir o movimento. Ela permaneceu imóvel, paralisada pelo medo. Nem se quisesse não conseguiria se mexer. Ela o sentiu aproximar-se dela, escutou sua respiração. Concentrou-se para não mexer nenhum músculo do corpo. Seu coração disparado forçava-a a respirar mais rápido e era difícil controlar aquele fluxo. Sua intuição lhe ordenava fingir estar em sono profundo o quanto podia. Ele virou-se para o berço. Ficou um tempo. Silêncio absoluto. Apenas se ouvia as respirações apressadas dos bebês. Fanny rezava sofridamente pedindo a Deus para que seus protegidos não acordassem. “Meu Deus, por favor, não deixe as crianças acordarem, não deixe, não deixe, não deixe, meu Senhor!! Faça com que este bandido vá embora e nos deixe em paz....” 

As preces da moça pareciam ter sido ouvidas. Após observar a menina por um tempo, o bandido virou-se para sair. Neste momento, Maria Eugênia remexeu-se no berço, deu um gemido e a chupeta caiu de sua boca. A garotinha resmungava baixinho e Fanny congelou ao ver o homem parar e virar-se para a bebê. Ela fechou os olhos mantendo uma pequenina fresta aberta para acompanhar a cena. Sentiu os cabelos arrepiarem-se de medo. A respiração acelerou. Entrou em pânico pelo medo de ser descoberta acordada. Sentiu o homem voltando e parando em frente ao berço. Ela abriu os olhos para acompanhar os movimentos dele, preparando-se para atacá-lo se fosse preciso. “Meu Deus, que bobagem, atacá-lo com que?”, pensou. 

Então, aconteceu o impensável. O bandido pegou a chupeta e a colocou na boca da bebê, afagando suas costas e ninando-a carinhosamente. Maria Eugênia logo aquietou-se e dormiu novamente. Certo disso, o homem virou-se para observar Fanny e Bento. Após alguns segundos, ele caminhou para a porta e saiu.

Fanny permaneceu paralisada ainda por um longo tempo. Estava com câimbras, mas não ousava mexer nenhum lugar do corpo. Aguardou assim até ouvir a porta de entrada se fechando. Foi quando começou a ensaiar os primeiros movimentos lentamente, mas atenta, caso precisasse retornar à posição que estava. Mexeu as mãos, os braços, virou o pescoço endurecido pela posição incômoda e levantou o tronco. Observou tudo ao redor. Bento dormia profundamente, Maria Eugênia também. Tudo bem com as crianças. “Obrigada, meu Deus...” pensou, postando as mãos no queixo em prece.

Foi aí que notou seus lençóis molhados de urina e suor.