Opinião: ‘Blau blau’

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: ‘Blau blau’
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




— Zé Merenda, por gentileza, evite conversar durante a cirurgia. Se continuar falando assim, você corre o risco de sofrer algum acidente com o boticão — pediu Toletinho pela décima vez enquanto prosseguia à uma difícil extração de dois dentes fraturados do seu paciente que parecia ter engolido língua de maritaca.

Dez segundos calado e Zé Merenda recomeça:

— Mas Doutor, o que você achou da minha proposta política para estas eleições? Gostou? Talvez não tenha explicado direito, mas nesse pleito tive a ideia de... — e por aí continuava a discorrer sobre sua plataforma política com a boca cada vez mais cheia de sangue, que escorria inexoravelmente pelos cantos da boca.

Falava, falava, falava enquanto Toletinho prosseguia com a cirurgia. Lucionília, sua auxiliar, tentava sugar o sangue e ao mesmo tempo conter a língua do Zé, porém, sem sucesso. Ela olhava para o dentista pedindo socorro, sem condições de ser atendida.

Luíz Eduardo Merenda, o Zé Merenda, era político experiente, boa pessoa, mas tinha um defeito: falava demais. Falava sem parar. Ele e Toletinho se conheciam dos encontros quase diários na Barbearia do Tóim, o Antônio Manso Pacífico, famoso barbeiro em Formiga. A turma costumava reunir ali nos intervalos de trabalho para conversar fiado. Nas ocasiões em que o Zé Merenda estava presente, ninguém conseguia falar. E agora, que iniciava o período das campanhas políticas a coisa havia piorado. Era candidato a vereador pelo terceiro mandato. Inclusive, era conhecido por esse apelido, por sempre defender a melhoria da merenda escolar, coisa que, inexplicavelmente, nunca melhorava.

Dias atrás, na Barbearia a turma comentava:

— Nesse ano de política será difícil aguentar o Zé Merenda na rodinha.

Realmente, parecia que iria ser mesmo difícil e Toletinho estava comprovando isso. Tentava luxar as raízes quebradas dos dentes do paciente, mas a falação constante aumentava o sangramento, a salivação e o perigo de acidentes com o instrumental perfurocortante de uso corriqueiro em Odontologia.

Resolveu aplicar mais uma dose de anestésico para o nervo lingual, na esperança de que a sensação anestésica exacerbada, pudesse parar o falatório. Assim fez. Aguardou um pouco o efeito da anestesia aumentar, mas não adiantou. Pelo contrário, agora com a língua mais “abobada”, o empolgado paciente falava animadamente sobre o seu projeto de diminuir os poderes da Vigilância Sanitária, que eram imensos. 

O jeito era dar mais uma dura no político, tal como se dava nas crianças birrentas antigamente. Então, colocou o instrumental em seu equipo, segurou o queixo do paciente com firmeza e disse em voz alta, com entonação bastante forte:

— Ô Zé Merenda, se você continuar falando assim, corre o risco do meu instrumental perfurar sua boca, além de cortar a sua língua, que já está deveras inchada e mordida! Talvez seja necessário costurar sua língua! Não vai querer que isso aconteça, não é mesmo? Logo agora que você está em plena campanha política...

Zé Merenda assustou-se com a braveza do dentista. E enquanto o susto durou, deu uma pequena pausa no falatório, deixando Toletinho terminar o serviço, embora ainda tentando conter o sangramento. 

Procedimento realizado com sucesso, Toletinho dirigiu-se assim a Zé Merenda:

— Amigo, diga “blau blau” ...

O paciente estranhou a ordem, mas respondeu com a língua enrolada:

— Bbllaaau blllaaaauuuau ...

— De novo! — ordenou o dentista.

— Bbblllaaaaau bblllllaaaauuuau ...

— Ah!! Ainda bem. Felizmente, não costurei sua língua, mas você vai precisar ficar uns dez dias sem falar, de repouso. Entendeu? Se não obedecer, já sabe né?? 

O paciente, com os olhos arregaladíssimos, assentiu que sim com a cabeça.

E foi assim que a turma da Barbearia do Tóim ficou livre do falatório político do Zé Merenda por muitos dias...