Opinião: Complexo de sutiã

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: Complexo de sutiã
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Era a centésima vez que a menina passava em frente à “Atrevida Moda Íntima”. Ao passar, invariavelmente, ela olhava para o interior da loja. Se a atendente estivesse olhando, ela desviava os olhos rapidamente. Ensaiava um movimento para entrar e desistia. Esta cena se repetiu por tantas vezes, que a menina — assim como a vendedora — perdeu a conta. 

O fato é, que ela já havia andado por aquela rua infinitas vezes, até porque sua casa era ao lado. Passava todos os dias. Indo e voltando para ir à escola, à casa de sua melhor amiga, à missa, ao mercado, à loja de “muitas coisas”, como chamava a loja de bugigangas do Mourão e todos os outros lugares que frequentava.

No entanto, naquele dia, havia um motivo especial: seus minúsculos seios de menina estavam apontando sob a blusa e as pessoas estavam reparando. Ora com olhares obscenos, ora com ar de chacota, ora com um gesto de incômodo, ou às vezes só olhavam. E aquilo a incomodava profundamente. Ela não sabia o porquê. Havia um sentimento estranho naquela situação, que não conseguia identificar, talvez por sua total ignorância nessa área, fato muito comum para as meninas daquele tempo.

O leitor deve estar se perguntando: qual tempo? O tempo em que as meninas começavam a entrar na puberdade e ignoravam todas as nuances da vida sexual de uma mulher. O fato, é que, naquele ano de 1975, as coisas funcionavam assim: a maioria das mães não conversava abertamente com as filhas sobre “coisas de mulher”. Eram assuntos delicados, considerados tabus, chegavam a causar um grande constrangimento entre pais e filhos. 

Talvez seja por isso que, quando a Menina se queixou à Mãe, dizendo-lhe: “Mãe... as pessoas estão olhando para os meus peitos, acho que preciso de um sutiã”, ela respondeu distraída, sem tirar os olhos do ferro elétrico e da pilha de roupas para passar:

— Ah sim, estou ocupada agora, mas pode ir ali na loja ao lado, a “Atrevida Moda Íntima”, a moça é minha amiga, pode escolher o modelo e comprar, amanhã eu pago.

A Menina não acreditou. “Como assim, ir ali na loja ao lado, pode comprar e escolher o modelo que amanhã eu pago?”, pensou. “Será mesmo possível, que além de estar com os peitos à mostra, ainda teria que passar pelo constrangimento de comprar um sutiã sozinha? ” Sabia que a Mãe era muito ocupada, trabalhava por dois horários, que vida de professora não era fácil, mas daí a ter que comprar um sutiã sozinha?... Pedir ao Pai para ir com ela seria impensável. Ah, a vida, definitivamente não era justa com ela...

Se a vida era justa ou injusta com ela, ninguém poderia saber. Só sabia que precisava urgentemente de um sutiã. Então, o jeito foi sair, descer as escadas e dirigir-se à bendita loja de sutiãs. 

Entretanto, ao chegar na porta do estabelecimento, perdeu a coragem de entrar. Um sentimento de vergonha a assaltou. “Mas vergonha de que? ”, pensou, “não seria natural precisar de um sutiã aos onze anos de idade? ” Não sabia responder. Não conseguiu justificar aquele sentimento. Ela estaria com vergonha por ter crescido? Estaria com vergonha dos minúsculos seios apontando? Ou por ter que resolver questões de sua pré-adolescência sem sua mãe? Não sabia. E aquele não era o momento para entender nada, afinal, precisava da bendita lingerie com urgência para ir à aula no outro dia. Talvez, alguns anos depois, aquele “complexo de sutiã” se resolvesse com ou sem terapia. Porém, agora, teria que enfrentar aquele monstro com coragem.

De forma que, após muitas idas e vindas em frente à loja, que ficava ao lado da sua casa, a Menina encheu-se de coragem e entrou, de cabeça baixa. A vendedora, muito solícita, fingindo ser a primeira vez que a via por ali, perguntou o que a garota precisava. 

— Ah, na verdade, não é para mim. É para a “minha irmã”, ela precisa urgentemente de um sutiã. Minha mãe me incumbiu de comprar para ela. E mandou dizer que virá pagar amanhã.

— Humm... muito bem, e de qual modelo “sua irmã” precisa? — perguntou a moça divertindo-se por dentro, pois era do seu conhecimento que a Menina só tinha mais um irmão.

— “Ela” precisa de um modelo de rendinha, daqueles que abotoam com “tac” — respondeu a Menina imitando o barulho do fecho do sutiã e fazendo o gesto como se estivesse fechando a peça. Ela havia visto como funcionava o sutiã da melhor amiga. Aquilo passou a ser seu sonho de consumo.

— Ah sim, muito bem... e qual seria o tamanho que a sua “sua irmã” usa? — perguntou a vendedora, cada vez se divertindo mais.

— Do mesmo tamanho que eu — respondeu a Menina apontando para os próprios seios.

Compra devidamente concluída, a Menina saiu muito feliz e aliviada com o seu glorioso sutiã de rendinha, com fecho que faz “tac”. 

O tempo passou e até hoje a Menina não solucionou o exato motivo daquele impasse. Mas uma certeza ela tem: que o episódio do sutiã a aparelhou muito bem para enfrentar os muitos momentos em que precisou de coragem para encarar vários monstros que lhe desafiaram ao longo da vida. Graças ao sutiã de sua irmã.