Opinião: Damião e Portinari

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: Damião e Portinari
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




O despertador acordou Damião bem no instante em que estava caindo. Normalmente, ele teria vontade de quebrar o indefeso aparelho, mas, naquele dia, deu graças a Deus por tê-lo livrado da queda no despenhadeiro. Por isso, piscou os olhos e respirou fundo.

O dia insinuava-se por entre os buracos da surrada cortina da janela do quarto humilde que dividia com os cinco sobrinhos. Com cuidado, para não os incomodar, esticou os braços magros, retesando o corpo dolorido num longo espreguiçar. O estômago vazio roncou alto reclamando o alimento. Já ia levantar-se, quando lembrou de rezar. Sua avó dizia que não era bom sair da cama sem a reza. Precisava agradar seu anjo da guarda para receber a devida proteção. Então, rezou em silêncio. Agradeceu por mais um dia de vida, pediu a Deus que o ajudasse a conseguir trabalho e terminou com o seu mantra sagrado, “o Senhor é meu pastor e nada me faltará, amém”.

Recém-chegado em Formiga, Damião deixara sua terra natal, no sertão pernambucano, onde a seca e o desemprego minavam a resistência e as vidas dos seus conterrâneos. Viera a convite da irmã, para sair da pobreza extrema. Espremida num casebre minúsculo, a família dividia as incertezas que o desemprego gerava, administrando a falta de quase tudo. Somente o cunhado estava empregado, e, apesar disso, ele tinha esperança de que a situação iria melhorar. Inclusive, pretendia buscar os pais e os outros irmãos para junto deles quando as coisas melhorassem. Havia ainda a namorada de infância, a Suzana. Muito bela, apesar da pobreza, a pequena morena de olhos cor de âmbar, cabelos bem escuros e anelados, ficara chorando na plataforma da rodoviária no dia em que partira. Prometeu que o esperaria. “Deus é mais”, pensou. 

Levantou-se em silêncio, trocou a roupa com dificuldade pela falta de espaço e saiu do quarto. Foi até a cozinha, abriu a porta que dava para o terreiro e admirou aquela manhã. O vento suave trouxe o aroma e o ruído da vida que vibrava lá fora. O cacarejar das galinhas, a algazarra dos passarinhos, o farfalhar das folhas do bambuzal e da mandioca ainda jovem brotando da terra, os três cachorros mirrados da família acordando vagarosamente.

Aquele era um novo dia e o sol nascendo por trás do bambuzal infundiu-lhe calorosa esperança. Indicava a vida em seu normal. Tudo em ordem, principalmente porque ainda havia pó de café. Apressou-se em coar aquela bênção. Havia pão, mas era importante deixar para os sobrinhos, pois, eram crianças e precisavam mais daquilo do que ele, que, apesar de jovem, já havia passado da fase de crescimento.

Terminada a “refeição matinal”, saiu de casa sabendo o que ia fazer. Desceu o morro para procurar trabalho, como todos os dias, com o calçamento malcuidado machucando seus pés, entretanto, naquele dia havia esperança em conseguir emprego regular como servente de pedreiro. No dia anterior conhecera um construtor modesto e iniciante ainda, e, após fazer um teste, ele lhe prometera o cargo.

Enquanto andava a passos largos pela cidade, passou por uma casa ampla, de estilo moderno e sofisticado, uma bela construção. Damião desejou fazer casas assim, agora que seria servente, e, quem sabe, se trabalhasse muito, conseguiria ser até engenheiro e projetar aquelas belezas. Sonhar não custa nada, como dizem os poetas....

Um pouco tonto pela fome, diminuiu a marcha para observar a bela edificação, cuja janela frontal estava aberta. Da ampla fresta conseguia visualizar uma pintura na parede alva. Era um quadro largo que chamava a atenção pelas imagens grotescas. Resolveu arriscar e entrar pelo gramado impecável até a janela, a fim de apreciar a obra. O que viu lhe deixou abalado. Era uma cena que exibia uma família de retirantes, nitidamente nordestinos, que pareciam estar se deslocando de sua terra, a fim de fugir da seca, da miséria, da fome, da falta de perspectiva futura e sabe-se mais do quê. Conseguiu ler o nome do pintor: Cândido Portinari. Na pintura em tons terrosos e escuros, havia quatro adultos e cinco crianças, com trapos de roupas, descalços, todos tristes e sombrios, ocupando quase toda a tela; e, ao fundo, uma paisagem seca e sem vida nenhuma, exceto por urubus sobrevoando o local. Não lembrava nem de longe a natureza de verdade. Muito menos as expressões daquela família, denotavam as notas de felicidade e saciedade de um povo alimentado e saudável. Seus corpos, magérrimos e tristes, traduziam a fome e o desespero das pessoas que lutam por sobrevivência em um país com tantas distorções e desigualdades. Chamou-lhe a atenção, em especial, as expressões assustadas das crianças, as barrigas grandes, a falta de espontaneidade e alegria, típicas da fase infantil. E quanto aos adultos da cena, não era menos aterrador: um velho, aparentemente doente e com o dorso nu; uma mulher jovem, talvez na adolescência, com uma das crianças ao colo; um homem dando a mão a outra criança, carregando um pedaço de pau com uma trouxa ao ombro; e por fim, uma mulher grávida, com panos à cabeça e, no colo, um bebê envolto em um manto encardido.

Damião permaneceu ainda um tempo observando a obra. Com o coração apertado, virou-se e deixou a propriedade. Então, sentindo a fome lhe açoitando o estômago, recitou o mantra em voz alta: “o Senhor é meu pastor e nada me faltará...”.