Opinião: Ela falhou no dever de proteção à filhinha

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: Ela falhou no dever de proteção à filhinha
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




  Abatida, muito abatida. Em torno dela, uma aura de sofrimento e angústia. Recebo-a e lhe ofereço água. Não aceita. Pergunto-lhe o que a traz a mim. Ela respira fundo antes de responder.

Conta que está inconformada: o ex-marido ganhou na Justiça a guarda da filhinha deles. Diz que a criança tem cinco anos.

Estranho o fato de a guarda ter sido concedida ao pai. Explica, com dificuldade, as razões que motivaram a decisão do Juízo.

Relata que, ainda quando detinha a guarda da criança, precisou sair para comprar algo no centro da cidade. Como o irmão dela morava perto, pediu a ele que ficasse cuidando da menina. Retornou da compra antes do tempo previsto, pois conseguira uma carona, e deparou com o irmão nu sobre a filhinha dela. Horrorizada, avançou sobre ele, esmurrou-o e o arrancou de cima dela. Ele saiu correndo, mas isso já não importava para ela. Estava com a atenção toda voltada para a filha, que chorava. Procurou, de todas as formas, consolar a criança. Deu um banho nela para limpar o sangue presente na área genital.

Ficou dividida entre o temor de que o irmão fosse preso, caso o denunciasse, e a revolta pelo que ele fizera à filha dela. Conversou com a mãe a respeito disso e decidiram calar-se. Se falassem, seria um escândalo na família. As duas conversaram com a menina, procurando amenizar o que tinha ocorrido, e pediram que não contasse a ninguém o que tinha ocorrido.

Chegou o final de semana em que a filha iria para a casa do pai e da madrasta. Parece que, quando esta foi ajudar a menina no banho, percebeu que a área genital dela estava ferida. Preocupada, relatou isso ao marido.

Os dois levaram a criança ao posto de saúde. Lá se constatou, em um exame preliminar, que tinha ocorrido abuso sexual.  Seguiram para o hospital, onde foram feitos exames mais detalhados. Constataram-se várias escoriações e o rompimento do hímen, ficando confirmado o estupro praticado contra a menina.

Conversaram com calma com ela até que relatou tudo o que tinha ocorrido. Contou, inclusive, que a avó e a mãe dela disseram que desculpasse o tio, pois ele a tinha machucado porque era bobo, não sabia brincar com crianças.

Agora, devido à queixa apresentada pelo pai da menina, há um inquérito criminal contra o irmão dela. A família está arrasada, principalmente porque ela, em seu depoimento na delegacia, reconheceu sua falta de cuidado ao deixar o irmão cuidando da menina, pois ela própria, quando criança, também fora vítima de abuso sexual praticado por ele, fato que a mãe dela ocultou de todos. O argumento era que, se ela contasse, isso destruiria a unidade da família. O ganho foi que, quando a mãe tomou conhecimento do abuso, o irmão deixou de praticá-lo. Pensou que nunca mais tentaria algo assim, por isso não viu perigo em deixá-lo com a filha dela.

Tento manter inexpressiva minha fisionomia, mas dentro de mim há um turbilhão. O número que conheço por estatística personifica-se diante dos meus olhos. Pesquisas revelam que o abuso sexual que ocorre no seio das famílias – abuso sexual intrafamiliar – representa 80% dos casos relatados a respeito desse tipo de violência.

Ela reproduziu com a filha a mesma medida que a mãe adotara com ela. Repetiu a negligência, pois trazia na própria história a marca dolorosa do abuso não denunciado. Não conseguiu proteger a filha, não conseguiu punir quem a violentara. A prática do segredo para não expor a família quase atingiu duas gerações. Ela, que passou por experiência semelhante, sabe que a filha sofreu danos não apenas físicos, mas também psicológicos. Quanto sofrimento!

Repete que, agora, a menina está sob a guarda do pai. Como mãe, está impedida de conviver com ela até ser finalizado o inquérito. Só pode encontrar-se com ela em local público e na presença de uma pessoa de confiança do ex-marido. Quer lutar contra essa decisão.

Digo-lhe que tem o direito de contestar a decisão, mas que a probabilidade de ser modificada é baixa. É que, mesmo não tendo sido ela a praticar a violência contra a filha, não lhe proporcionou um ambiente seguro. Se o irmão dela era um abusador, não poderia ter deixado a menina sozinha com ele. A decisão judicial busca proteger a menina, principalmente porque há um inquérito criminal em curso. Sua conduta como mãe também será averiguada nesse inquérito.

De acordo com a Constituição Federal, é dever da sociedade colocar a criança a salvo de toda forma de negligência, violência e crueldade. Nesse sentido, o Juízo deve ter também pedido que se averiguasse se a casa do pai da menina era segura para ela, se ele tinha condições de cuidar da alimentação, da saúde e da educação dela.

Sugiro que pense no bem-estar da filha e que, com base nessa reflexão, depois me diga se quer mesmo entrar com um recurso contra a decisão do Juízo.

 

Maria Lucia de Oliveira Andrade

maluoliveiraadv201322@gmail.com