Opinião: Ele se separou dela, e ela quer usucapião da casa
Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

preparados para os desafios da vida a dois e estavam certos do que queriam. No entanto, com o passar dos dias, foram percebendo que não tinham pensado sobre muitos aspectos rotineiros que poderiam desgastar o relacionamento deles. O curso de noivos não os alertou para pequenos detalhes, muito bem aceitos durante o namoro porque a convivência não é diária, mas danosos quando se passa a viver sob o mesmo teto.
O modo como ele apertava ao meio o tubo da pasta de dentes, os arrotos que passaram a ser dados perto dela, o pingo de xixi na beirada do vaso sanitário, o uso do banheiro com a porta aberta, o hábito de palitar os dentes após as refeições – tudo isso passou a ser motivo de discussões.
Embora ela pedisse que corrigisse essas práticas, ele não lhe dava ouvidos. Ele não compreendia que essas pequeninas coisas repercutiam na libido dela. Era difícil, em um momento de intimidade dos dois, ela não se lembrar dos arrotos dele.
Já ele começou a ficar muito incomodado com aquela mulher – a seu ver, implicante – que lhe cobrava durante todo o tempo, que parecia querer moldá-lo, inclusive ensiná-lo a usar o banheiro. Que mal fazia um pingo de xixi na beirada do vaso sanitário? Bastava ela passar um pano ou papel e limpar. Isso acaso lhe fraturaria as mãos? Que problema havia em arrotar perto dela? Não sabia ela que arrotar após as refeições é, em alguns países, como na Arábia Saudita, por exemplo, sinal de boa educação e de satisfação pela comida? Quando ponderava isso com ela, a resposta vinha certeira: “Estamos no Brasil. Aqui é sinal de falta de educação.”
Também ele estava insatisfeito. Organizado que era, não tolerava o descuido dela com a casa, as roupas deixadas em todo canto, a bolsa largada sobre o sofá, a toalha molhada sobre a cama... Acostumada com a mãe sempre arrumando tudo, ela levou para o lar deles esses péssimos hábitos.
Tudo isso – ou esse quase nada, se analisado da perspectiva de que o amor e o diálogo tudo superam – foi ganhando proporções tais que a convivência entre os dois deteriorou. Passaram a não suportar um ao outro. A separação foi inevitável.
Ele saiu de casa, mas se encontravam em eventuais celebrações de aniversário em família. Percebia que ela, participando de eventos promovidos por amigos em comum, buscava maneiras de os dois reatarem, mas, para ele, não havia volta.
Seguiram assim e, passados três anos, ele decidiu propor uma ação de divórcio.
Para sua surpresa, ela requereu usucapião familiar da casa onde moravam. Está alegando que ele abandonou o lar e que somente ela se esforçou, durante o período da separação de fato, para a manutenção do imóvel. Ele me pergunta se ela pode conseguir isso na Justiça.
Antes de lhe responder, pergunto sobre a metragem do imóvel, se ele fica na zona urbana e se pertence conjuntamente ao casal. Ele me diz que se trata de uma casa com 200 metros quadrados, localizada na cidade, e que pertence aos dois, sim.
Explico-lhe, então, que quatro requisitos estipulados para a usucapião familiar estão cumpridos: o imóvel é urbano, está dentro da dimensão máxima, que é de 250 metros quadrados, é de propriedade conjunta, e a ex-esposa exerceu a posse direta sobre ele (sobre o imóvel) por dois anos, ininterruptamente, sem oposição e com exclusividade.
Contudo, só pode ser requerida a usucapião nos casos em que o marido ou companheiro abandona o lar por mais de dois anos sem que se manifeste, nesse período, sobre os seus direitos e sem que demonstre qualquer interesse a respeito da manutenção do imóvel.
“Isso não ocorreu. Sempre me interessei pela manutenção do imóvel. Contribuí, inclusive, financeiramente para que fosse feita a troca de um encanamento defeituoso.” Digo-lhe que testemunhas disso, assim como comprovantes de pagamentos realizados por ele poderão ser apresentados como prova de que manteve interesse pelo imóvel. Também poderão ser apresentados depoimentos sobre o fato de que ele e ela mantiveram contato ao longo da separação de fato. Mesmo que ocasional e espaçada, a presença dele no ambiente familiar será sinal de que nunca teve a intenção de abandonar a ex-esposa à própria sorte e de abrir mão do imóvel.
A maior parte das decisões judiciais são no sentido de que o fato de o ex-cônjuge ou ex-companheiro deixar o imóvel não significa necessariamente abandono do lar ou da família. O abandono do lar se configura pelo afastamento, mas também, por exemplo, pela imposição ao outro, que ficou residindo no imóvel, de todas as despesas para a manutenção deste, assim como pelo abandono efetivo dessa pessoa.
Pelo que ele me relatou, o que houve foi uma separação de fato, e não abandono, tanto que continuaram a conviver e que ela tentou reconciliar-se com ele. Em sua defesa, para evitar a aplicação da usucapião, é isso que alegaremos, assim como o interesse dele pela manutenção do imóvel. Evidentemente, teremos de provar nossas alegações.