Opinião: Estrondos que salvam

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: Estrondos que salvam
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Quatro horas da manhã.

Ela sente cheiro de óleo diesel. Ouve o ronco de um motor e os passarinhos ao redor se assustam, debandam em revoada.

Seu corpo ressente-se da posição excêntrica em que se largara dormindo no banco da rodoviária. Quase acordada, sente arder em seus ouvidos o canto das cigarras anunciando a chegada da primavera.

Ainda com os pés dormentes e sobre a mala, espreguiça-se demoradamente, para um lado e para o outro. Faz calor. Resolve tirar o moletom, mas ao fazê-lo, borra-o de batom vermelho “meu Deus, como esse batom resistiu até agora?”, ela pensa.

Agora já acordada, passa a observar o movimento de vai e vem das pessoas presentes, enquanto não chega sua vez de embarcar. Passa gente, senta gente, fica gente, levanta gente...

Um casal à sua frente discute. Ela está brava, porque ele demorará a retornar para vê-la. Faz beicinho, franze o cenho e ele a enlaça com o braço, puxando-a para junto de si. Ela levanta o queixo para receber um beijo, ele obedece. Parece que está perdoado.

Mais ao lado, duas mulheres cheias de bagagens conversam amigavelmente comparando suas unhas compridas, versando sobre técnicas de esmaltação. Parece estar tudo bem entre os esmaltes.

Vira-se para trás ao ouvir dois rapazes cantando um rap e estalando os dedos, ao mesmo tempo em que balançam seus corpos ao ritmo da música, bem sincronizados. A marcação da música lhe invade o corpo, mas ela acha estranho acompanhar aquela dança. Não parece estar dançante sua tristeza.

Ao seu lado esquerdo, há um homem pensativo e triste, olhar perdido, com as duas mãos segurando o rosto, cotovelos apoiados nos joelhos. Fome? Decepção amorosa? Desempregado? Ele se vira para ela, ela desvia o olhar. Não lhe parece adequado um ranking de tristeza naquela altura.

Nas duas cadeiras da outra fileira, uma jovem mãe amamenta seu filho, enquanto ele a olha nos olhos, puxando seu cabelo. Eles parecem conversar assim daquela forma muda. Tudo bem entre mãe e filho.

Ela observa todos aqueles personagens comuns pensando na natureza humana, tão variada, tão rica de emoções e sentimentos. E traumas. Muitos deles. Ela imagina todo aquele cenário retratado num grande quadro pintado a óleo, perguntando-se qual artista poderia transferir para uma tela aqueles comportamentos e sentimentos com segurança? Quem saberia pintar o que está na cabeça e no coração de cada pessoa? Quais eventos acontecem no universo cinematográfico da vida de cada um daqueles personagens? Brigam, comparam, divertem-se, alimentam-se, sentem, ressentem, entristecem-se... mas tudo parece estar bem.

Aquele quadro até poderia ser belo, mas não a caberia. Não caberia sua tristeza. Não caberia sua inquietude. Não caberia nada que ia dentro dela. O pintor precisaria de outra tela. Só para ela. Porque a dor dela... era a dor dela. Não cabia estar com mais ninguém. Por isso ela fecha os olhos apertando o frasco de veneno em seu bolso.

Vida amarga... ela está tentando decidir sobre o próximo passo, quando ouve um estrondo ensurdecedor bem perto (crashhhhhhh!!!!). Ela arregala os olhos saltando da cadeira. Coração disparado, corre rapidamente com a mala na mão. Fugir do estrondo, seu instinto mandava. Correu, correu. Parou. Olhou por trás do ombro, ofegando. A cena continuava exatamente como estava. Parecia que nada de anormal havia acontecido. Somente ela ouvira o barulho? Alucinação?

Apertando novamente o veneno, pensa que nada daquilo fazia sentido. Por que teria corrido?

Enquanto observava perplexa o nada acontecendo, um cãozinho branco, sujinho, aproxima-se dela. Não estava assustado. Apenas olha-a, humilde, como a dizer: “seja minha amiga”. Ela retribui o olhar e ele se deita sobre seus pés. Ela se ajoelha e afaga a cabecinha magra e cheia de carrapichos. Sente-se mais segura agora. Decide esperar... mais um pouco. Só mais um pouco.

 Até seu ônibus chegar.