Opinião: Fiado em Formiga

Lúcia Helena Fiúza (de Belo Horizonte)

Opinião: Fiado em Formiga
Lúcia Helena Fiúza é professora aposentada




Formiga sempre teve comerciantes inteligentes, competentes e honestos. Mas também há, e sempre houve, aqueles que são espertinhos, picaretas e desonestos.

No tempo em que éramos pequenos, eu e meus irmãos ouvíamos de nosso pai, Seu Coló, que ninguém deveria comprar nada fiado em lugar nenhum. A gente cumpria à risca, só que era uma contradição engraçada, pois ele tinha caderneta em vários estabelecimentos da cidade.

Quando se firmou definitivamente em Formiga, em 1950, papai fez inúmeras amizades e ganhou a confiança de todo mundo. Comprava na farmácia e pedia para anotar; enchia sacola de frutas e verduras na venda de um velho senhor e punha no caderninho; o grosso era em armazéns, comprava de tudo e avisava que era pra dependurar que depois daria uma passadinha para acertar. Até fazendas de pano para a mamãe costurar era a prazo.

No final do mês, papai recebia o seu salário da Rede Ferroviária e saia de porta em porta quitando tudo, ninguém ficava pra trás. Dois ou três dias depois, tudo começava de novo. Sua forma de tranquilizar os comerciantes era lembrar que quem confiava nele poderia fazer compromisso com o dinheiro, se preciso, ele abriria mão das reservas que mantinha em forma de letras de câmbio no Banco do Comércio e Indústria.

Assim a nossa vida foi indo em total controle, tranquilidade e dignidade. Não tínhamos luxo (nem sócios da Praça de Esportes éramos), mas a mesa era sempre sortida e as camas com lençóis limpos e bem passados.

Papai nunca foi de beber muito, mas dar uma passadinha no Ponto Chic vez em quando era comum. Várias vezes fomos à Confeitaria Áurea para um quitute e presenciamos o mimo que oferecia à mamãe com um belo jantar a dois (ou a cinco, ele a mamãe e nós, os três filhos) no Restaurante Toca da Onça. Tudo no fio do bigode, como fazia questão de comentar.

Papai, como Formiga inteira sabia, tinha um problema na perna, a direita era dois centímetros menor que a direita, o que o obrigava a mancar e não o deixava ser ligeiro. Ele não vencia um quarteirão sem dar uma paradinha, sempre segurando o joelho para aliviar. Seus amigos brincavam que no início do mês, quando ele apontava na esquina, dava pra ver o sinal de que o barulho feliz da caixa registradora estava no quase.

A vida de papai foi uma experiência humana que daria para um manual de amor e sorriso. Nasceu para ser honesto e fazer todo mundo feliz. Faleceu de câncer de estômago em 2001, aos 81 anos, e foi sepultado em Iguatama.

Acho que o ano era 1998, quando Doutor Nícias, um médico amigo seu, recomendou vários exames. Papai começou a doer a barriga e não houve leite de magnésia que aliviasse. Lembro-me de que o resultado chegou de Belo Horizonte ao Laboratório do Marcel, um cientista/laboratorista que nas horas de folga era flautista (foi há vários saraus lá em casa). Quem buscou fui eu. Não entendi muito bem o que estava escrito, mas o Seu Marcel explicou que era positivo.

Do dia em que papai ficou sabendo do câncer até o dia do seu falecimento, ele nunca mais comprou um só centavo fiado. Dizia que todo mundo vendia para ele sem que ele tivesse de assinar um só pedaço de papel de pão, mas depois de espalhada a notícia de sua doença, poderia ser diferente.

Todo mês era assim, quando o seu salário chegava, ele colocava tudo nas mãos de mamãe e ela administrava as finanças da família. De casa, papai praticamente não saiu mais.

O velório foi muito triste. O que amenizou o trouxe conforto e alívio, foi que os últimos dias de papai foram de muito sofrimento.

Seu Coló foi sepultado em uma sexta-feira à tarde. Passamos o final de semana arrumando a casa e organizando seus documentos. Na segunda-feira bem cedo, já tinha fila de “amigos seus” apresentando contas e mais contas que teriam sido feitas durante o período de sua enfermidade. Apesar de sabermos da impossibilidade de ser real cada uma delas, não questionamos e pagamos todo mundo. Até hoje, trago comigo cada notinha, vai que algum dia algum descendente desses “comerciantes de bens” cismam que ficou algum resquício…