Opinião: Há prazo para ajuizar ação de indenização por abandono afetivo

Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Opinião: Há prazo para ajuizar ação de indenização por abandono afetivo
Maria Lucia de Oliveira Andrade é advogada




Ouvi-la contando sua história me remete a muitas outras narrativas que conheço bem. Quando se tem uma família com muitos integrantes, como a dela e a minha, tem-se amostra de todos os dramas humanos. Brincando com a letra da canção de abertura da novela “Mulheres de areia”, em reprise na Rede Globo, eu diria que, em famílias assim, tudo pode acontecer, sendo ou não noite de lua cheia.

Ela, personagem central do drama, engravidou logo que saiu da adolescência. O pai da criança, tão jovem e pobre quanto ela, registrou-a e ficou por perto nos três primeiros anos. Depois, sumiu, atraído pelo cântico de um novo amor. Ela agiu da mesma forma. Encantou-se por um rapaz que vivia no mesmo bairro dela. Com isso, o pai da sua menina resolveu sumir de vez. 

Como nada está tão ruim a ponto de não piorar, ela se descuidou e engravidou do novo namorado. Este se mudou para local ignorado assim que soube da notícia. Foi-se e não apareceu para registrar a criança. Não sabia onde ele passou a morar e desconhecia o nome completo dele (sim, sem saber o nome completo dele... muitas mulheres engravidam de homens cujo nome completo elas nem sabem). Assim, nada pôde exigir dele.

A chegada da segunda filha tornou ainda mais difíceis as condições de vida da família. Sua sorte é que a avó das meninas (talvez por ter sido também mãe solteira) nunca a abandonou. A boa senhora ficava com as duas meninas, enquanto ela ia trabalhar como faxineira, dia após dia.

Quando o pai da primeira menina, já casado com outra pessoa, soube que havia sido abandonada grávida, voltou a contribuir financeiramente para o sustento da filha. Isso aliviou um pouco a situação.

Ela me conta também que, sete anos depois, descobriu onde morava o pai da segunda filha. Procurou-o e pediu que assumisse a paternidade da menina. Em resposta, ele disse que não tinha filha nenhuma. Por causa disso, ela teve de ajuizar, com a ajuda do Núcleo Jurídico da faculdade local, uma ação de investigação de paternidade. Nessa ação, ficou comprovado que a menina era filha dele. Finalmente, a menina pôde ter no registro de nascimento o nome do pai.

Agora, a menina já é uma jovem. Completou vinte e um anos na semana passada. Até hoje se ressente da ausência do pai. O fato de a paternidade ter sido reconhecida judicialmente não mudou nada. O pai nunca a procurou, nunca participou de nenhuma atividade para a qual ela o convidava nem lhe prestou qualquer amparo emocional. Nas poucas ocasiões em que estiveram frente a frente, fez questão de menosprezá-la, não se importando se fazia isso diante de outras pessoas, constrangendo-a e humilhando-a.

Por isso, hoje, não causa espanto a ela ouvir a filha dizer que vai processar o pai por abandono afetivo. Essa é a razão que a fez vir conversar comigo. Quer saber se existe mesmo a possibilidade de a filha pedir uma indenização devido ao abandono afetivo praticado pelo pai.

Respondo-lhe que a filha tinha e tem direito à convivência familiar, ao afeto e cuidado do pai. Viola-se a dignidade da pessoa humana quando pais e mães irresponsáveis não ofertam isso às suas crianças. Essa falta pode gerar danos ao desenvolvimento delas e à formação da sua personalidade e caráter. As sequelas emocionais do abandono afetivo comprometem a vida plena do ser humano.

Se a filha puder comprovar a rejeição, o descaso e o abandono afetivo praticados pelo pai contra ela, ele será condenado a indenizá-la. Porém, deixo claro: abandono afetivo não é a simples falta de convivência do pai com o filho.  Isso não é suficiente para caracterizar o desamparo emocional. Há de se comprovar que vem carregado de atitudes mais graves, como descaso, desprezo, rejeição. Comprovando isso, a filha dela poderá, inclusive, se assim quiser, pedir que seja retirado do próprio nome o sobrenome do pai, que a rejeitou.

Digo que há um prazo para ajuizar uma ação de indenização por abandono afetivo. Ela me interrompe, dizendo que isso não será problema, pois a filha acabou de completar a maioridade.

Explico-lhe que há problema, sim. A ação tem de ser proposta no máximo em três anos após o filho alcançar a maioridade, porém, quando o reconhecimento da paternidade se dá pela via judicial, como foi o caso da filha dela, os três anos começam a ser contados a partir do trânsito em julgado da ação que reconheceu o vínculo parental, e não depois que ela completou a maioridade.

Pergunto-lhe, apenas para me certificar novamente, quando foi reconhecida judicialmente a paternidade da filha dela. Responde que a menina tinha dez anos quando isso ocorreu. Portanto, muito mais do que três anos se passaram. Ela vai embora cabisbaixa, sabendo que a filha ficará muito, muito triste, ao saber que já se esgotou o prazo para processar o pai por abandono afetivo.

 

 

Maria Lucia de Oliveira Andrade

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