Opinião: Mora na casa que é herança de todos, mas não quer pagar aluguel
Maria Lucia de oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Encontro-a sentada a uma mesinha da casa de sorvetes mais frequentada na cidade atualmente. A tardinha acalorada convida à degustação de algo gelado. É uma pena que os assentos sejam banquetas, e não cadeiras com recosto. Banquetas não convidam ao ficar, não estimulam uma boa e tranquila conversa.
Cumprimento-a e pergunto se posso sentar-me com ela, pois não há mesas disponíveis. Ela, gentilmente, aponta a banqueta livre. Sento-me e pergunto por sua família. Conheço alguns dos irmãos dela. Ela me dá notícias de todos. Depois, um pouco sem jeito, pergunta se eu posso esclarecer uma dúvida que a tem incomodado ultimamente.
A última coisa que eu quero, na tardinha acalorada que me fez parar para tomar um sorvete, é trabalhar. Parece-me, às vezes, que algumas pessoas lidam com os advogados como lidam com professores de Português. A estes dizem assim: “Você pode dar uma olhadinha neste texto para mim?” Não sendo da área, minimizam a complexidade da leitura de um texto e acham que é simples opinar sobre ele, ou sugerir uma correção. Ao final, dizem obrigado, ou nem isso.
Ora, um trabalho foi realizado ali; alguns anos nos bancos da faculdade é que possibilitaram aquela consulta, que não deveria ser gratuita. Acaso se dirigem a um médico, dizendo “Doutor, dá uma olhadinha aqui no meu corpo e vê se tem algum problema com ele.” e, simplesmente, ao final, agradecem, sem pagar a consulta?
Comumente, não me sinto assim indisposta a responder a uma dúvida, mas não sou a mesma quando os dias de calor me incham a alma e os pés, e o que planejei foi apenas relaxar. Deixo de lado minha ranzinzice e disponho-me a ouvi-la, para não acentuar seu constrangimento.
Ela me pergunta se eu soube do falecimento da mãe dela, causado por um infarto fulminante. Digo-lhe que sim e me solidarizo com ela. Relata-me que, depois que o pai dela falecera, a mãe vivera sozinha na casa deles, porque tinha saúde plena e sabia cuidar-se sem a ajuda dos filhos. Porém, antes de ela falecer, um dos filhos se mudou para a casa, pois se separara da esposa. Disse que ficaria ali apenas por uns três meses, mas os meses viraram dois anos. Nada mais cômodo: quem fazia as despesas da casa continuou sendo a mãe dela; ele tinha moradia, comida, roupa lavada e passada...
Ela e os irmãos já estavam bastante incomodados com isso antes do falecimento da mãe. Contudo, evitavam tratar desse assunto para não criar um atrito familiar, pois sabiam que isso causaria profundo desgosto à pobre senhora. O irmão tinha consciência de que ficariam em silêncio para poupar a mãe, por isso, cada vez mais, aproveitava-se da situação.
Agora que a mãe faleceu, os irmãos não se contiveram mais. Em meio ao processo de inventário, chamaram o irmão para uma conversa e pediram que deixasse a casa, que era herança de todos e o único bem a ser partilhado. O desejo deles, inclusive dela, é colocar a casa à venda. O irmão se opôs veementemente a sair. Propuseram, então, que ele pagasse aluguel para continuar na casa. Ele se negou, dizendo que o imóvel era dele também. Ela me pergunta se há um jeito de obrigá-lo a pagar esse aluguel.
Respondo-lhe que, como o bem ainda não foi partilhado, ele pertence a todos. Se um dos herdeiros o usa com exclusividade, deve indenizar os outros. Eles podem, sim, requerer judicialmente que seja fixado um valor para o aluguel. Afinal, o irmão está usufruindo sozinho do imóvel. O bem pertence a todos os herdeiros; não há sentido em apenas ele ser privilegiado com seu uso.
Terá de ser feita uma avaliação e apresentado um laudo feito por um profissional do ramo imobiliário, observando-se o valor de aluguel praticado no mercado para imóveis de mesmas características e localização.
O irmão pagará a quantia que cabe a cada um, retirada a sua parte do valor total. Terá de arcar com os pagamentos de taxas e impostos referentes ao imóvel, bem como com os custos de sua manutenção.
Ela teme que o irmão não realize o pagamento do aluguel que vier a ser estipulado. Digo-lhe que, se ele fizer isso, será obrigado a desocupar o imóvel.
Despeço-me dela, comentando que, como o processo de inventário já está sendo conduzido por outro advogado, caberá a ele orientá-la sobre o procedimento para o requerimento de arbitramento de aluguel. Ela me olha sem graça. Acho que só agora se dá conta de que deveria ter apresentado sua dúvida ao profissional que ela e os irmãos contrataram, e não a mim. Termino meu sorvete, que tomei sem degustar, envolvida na conversa, e me vou.
Maria Lucia de Oliveira Andrade
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