Opinião: O anjo flautista

Rubem Alves (1933-2014)

Opinião: O anjo flautista
O Pergaminho’ publica crô-nicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Minha primeira lição sobre os anjos aconteceu silenciosamente, numa cadeira de barbeiro. Menino, eu ficava a olhar para aquele quadro tão bonito, o menino e a menina caminhando pelo bosque, prontos a atravessar uma pinguela sobre um abismo, e um anjo de enormes asas brancas a protegê-los. Que coisa boa, ter um anjo que cuida para que nada de mal nos aconteça! Num mundo guardado por Anjos da Guarda a alma descansa sem medos! Minha segunda lição aconteceu nas procissões católicas que eu observava de longe, desconfiado... As meninas se vestiam de anjo. E a marca da sua angelicalidade eram as enormes asas brancas costuradas às suas costas. Curioso: acabo de me dar conta de que nunca vi um menino vestido de anjo. Talvez por faltar aos meninos a pureza e a doçura peculiar às meninas inocentes. Mas a visão daquelas criaturas aladas não me fazia pensar nos céus. Pensava, sim, nos grasnados de dor dos patos e dos gansos que tiveram suas penas arrancadas a sangue frio para que as meninas tivessem asas celestiais. Definitivamente os anjos das meninas não se importavam com o sofrimento dos patos e dos gansos. Não eram adeptos da filosofia de reverência pela vida.

Incrédulo que sou, preciso dos olhos para acreditar. Acontece que nunca vi um anjo alado, embora muito tenha me esforçado. Assim acabei por desacreditar. Mas minha descrença acabou quando, ao ler as Escrituras Sagradas, fui informado de que o normal dos anjos é aparecerem como seres humanos comuns sem asas e auréolas, como foi o caso dos dois anjos que visitaram Abraão e Sara, o que é também confirmado pelo filme Cidade dos Anjos. Aprendi, então, que a característica dos anjos não são as asas mas uma outra coisa mais sutil. Explico-me.

A ciência, essa maravilhosa ferramenta de saber e poder inventada pelos homens, nos ensina que, para se compreender qualquer coisa é preciso que se vá até as suas causas. Tudo, mas tudo mesmo, tem uma causa. Obediente a essa exigência científica a psicologia trata de investigar as origens dos seres humanos para encontrar explicações para o que são, no presente. O homem é mau, gosta de fazer os outros sofrer, desordeiro, mentiroso, vigarista: como explicar essa aberração? A resposta está nas causas que se encontram no seu passado. Passou fome, apanhou do pai, a mãe era prostituta, não foi à escola. Ao contrário, uma pessoa boa tem de ter um passado bom: pais amorosos, lar estável, comida nas horas certas, boas escolas. Está certo. É assim mesmo. Vale para a maioria dos casos. Mas há casos que não há causa passada que explique. O que levou a Adélia a desacreditar da psicologia: “É capaz de a psicologia ser ciência mesmo. Se for, me avisem”. Vejam o caso do Nelson Freire, assombro pianístico. Nasceu em Boa Esperança, como eu, cidadezinha que nada sabia da tradição pianística. Piano, lá, era tão raro que quando o piano Pleyel de minha mãe chegou da França, presente de casamento, numa caixa de madeira, o carpinteiro que foi chamado para desencaixotar o piano vestiu um fraque. Não me acreditam? Pois é verdade. A cidade nada sabia sobre Bach, Beethoven, Chopin, Brahms – mas o Nelson Freire nasceu sabendo. Sem que ninguém lhe ensinasse tocou piano aos três anos de idade. Como explicar esse saber sem causas? A única explicação é que ele é irmão do Pequeno Príncipe. As causas que o explicam estão num asteróide distante, morada dos pianos e da música. E ele nasceu para nos trazer a felicidade da beleza da música. O mesmo não se pode dizer de Monet, de Beethoven, de Van Gogh, do Chico, do Milton, de Fernando Pessoa? O caso da bondade é mais facilmente explicável. E isso porque é possível fingir de bom, só por malandragem. Mas não é possível fingir de pianista, de pintor, de poeta –muito embora vários insistam em tentar. Vale o dito pelo educador português Vergílio Ferreira (1916-1996): “Só se consegue aprender o que nos não interessa. Porque o mais, o que é do nosso fundo destino, somo-lo”. Ao que Guimarães Rosa diz amém: “O que vou saber sem saber eu já sabia...”

Percebi então o meu equívoco: as asas dos anjos não são asas de pato e ganso. Voam, sim. E mais do que isso: fazem-nos voar! E com o que é que voam? Com aquilo que são, com o que mora nos seus corpos: a música, a poesia, a pintura, a dança... A arte são as asas do corpo. Por ela voamos!

Disse tudo isso para falar de um anjo sem asas que encontrei e que me fez voar. Lá no Ceará. Eu ia fazer uma fala, as mesmas coisas que digo sempre. Aí me disseram que antes da minha fala haveria um pequeno concerto de uma orquestra de flautas de crianças. Lá vieram elas, camiseta abóbora, flautinhas transversais na mão, pífaros, sorridentes. O regente era um mocinho. Disseram-me que aquele era um trabalho voluntário: nada ganhava por ele, além da alegria. Os anjos são assim: se contentam com recompensas etéreas e diáfanas. Tocaram músicas do povo. Tudo certo, tudo bonito. Os pés marcando o ritmo. E foram embora. Terminada a minha fala, era sábado, disseram-me que eu fora convidado para visitar a orquestrinha, no seu lugar, cidade de Aquiraz, bairro Tapera, interior, a uma hora de Fortaleza. Regente e crianças queriam dar um concerto mais comprido. Domingo às 18 horas lá fomos. Chegamos às 19 horas. O concerto ia acontecer numa chácara. Mangueiras enormes, carregadas de mangas. Céu estrelado. Uma brisa fresca, cheiro de plantas. Tocaram a sua alegria. Depois o regente, Marcelo, se juntou conosco para conversar. Pedimos que ele contasse sua história. Contou. Não sei se me lembro bem. Se errar, foi erro bem intencionado. Filho de uma família muito pobre. Pai bravo, truculento, batedor. Acho que pescava no rio. O que se comia era peixe com farinha. E era preciso trabalhar para ajudar. Marcelo vendeu picolés, depois empregou-se numa padaria. Ganhava dez reais por mês. Isso mesmo: dez reais que iam para o pai. Terminado o trabalho na padaria, ele ia para a beira do rio lançar tarrafa. Os peixinhos que pescava, por poucos que fossem, eram importantes. Um dia foi anunciado que ia-se formar uma banda. Quem quisesse que se apresentasse. Marcelo se apresentou. Pensou que seria uma dessas bandas de baile. Queria ser baterista. Mas não foi nada disso. O responsável começou a tocar uma flautinha. O Marcelo foi fisgado imediatamente. “Quando te vi amei-te já muito antes...” A flauta era sua bem amada que agora lhe cantava canções de amor. O pai disse “não” grosso quando soube das intenções do filho. “Flauta é coisa de vagabundo. Filho meu não toca flauta...” Marcelo soube que seu namoro com a flauta teria de ser como os namoros antigos, escondido. A inscrição pra valer terminava às 5 da tarde. Marcelo, nessa hora estava na padaria. Só pôde sair muito mais tarde, de bicicleta. No caminho, na aflição, caiu da bicicleta. Os peixes de espalharam e ele ficou todo escalavrado. E foi assim que chegou com duas horas de atraso. Mas o homem teve pena dele, tão ralado, tão desejoso. Aceitou sua inscrição. Ele tinha onze anos. Mas ele não tinha a flauta que custava dez reais, o salário de todo um mês. Precisava ajuntar dinheiro. Passou a caminhar olhando para o chão, em busca de moedas perdidas. Por um ano juntou moedas de um centavo. Juntou os dez reais. Comprou a flauta de plástico. Que felicidade! Mas não podia estudar em casa, por causa do pai. Passou a estudar no alto de um cajueiro, de noite, longe da casa. No cajueiro guardava a flauta. Mas, num dia de chuva, ficou com medo de que a flauta se estragasse com a água. Escondeu-a em casa. Ao final do dia, voltando do trabalho, o pai o esperava. Havia encontrado a flauta. O pai acendeu uma fogueira e queimou a flauta aplicando-lhe a seguir uma surra. Mas ele não desistiu. Mais um ano juntando centavos até comprar nova flauta. Aí ele arranjou uma aluna. Pela aluna ganhava dez reais por mês! Uma fortuna. Outra aluna, e mais outra. Nove alunas. Noventa reais. O pai mudou de idéia acerca da flauta. Flauta dava dinheiro! Aí, não sei por que motivos, ele se propôs a ensinar flauta para as crianças – sem nada ganhar. Foi assim que surgiu a orquestra de flautas. Agora quer formar outra orquestra, na cidade de Serpa. Problema: as crianças são muito pobres; não têm dinheiro para comprar flautas... Ao fim do seu relato eu não sabia se ria ou se chorava. Agora ele tem dezoito anos, “Eu tenho um sonho”, ele disse. “Gostaria de ter uma flauta de verdade, transversal. Mas ela custa muito caro: R$ 1.980,00. Vai levar muito tempo para ajuntar o dinheiro...” Nesse momento uma professora que estava na roda em silêncio abriu-se num sorriso e disse: “Marcelo, eu tenho uma flauta guardada numa caixa de veludo. Flauta que ninguém toca... A flauta é sua!” Isso aconteceu no domingo passado. Hoje o Marcelo já deve estar fazendo amor com a sua flauta...

O Marcelo me disse que aqui em São Paulo as flautas de plástico, fabricadas pela empresa RMV, que não conheço, custam só R$ 3. Eu poderia comprar as trinta flautas e enviá-las como presente. Mas achei que seria egoísmo de minha parte. Bom mesmo seria se muitos se dispusessem a patrocinar uma criança tocando flauta, sabendo o nome da criança e, quem sabe, tendo a sua fotografia! Poderia então acontecer com você o que aconteceu no filme Confissões de Schmidt... Escreva para ele. Ele e as crianças vão ficar felizes: Marcelo Freitas de Carvalho. Rua Bruno Lopes Queiroz, s/n. Bairro Tapera. Cidade Aquiraz. CEP 61.700-000, Ceará. O anjo flautista e suas crianças ririam de felicidade sabendo que longe outras pessoas sabem o que estão fazendo: vagalumes iluminando a noite...