Opinião: O buraco

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: O buraco
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Moro num buraco que fica dentro de uma roça pequena, que fica dentro de uma roça maior. Um buraco chamado Formiga.

Como se pode deduzir, aqui neste buraco moram muitos tatuzinhos. Muitos tatuzinhos que vivem num buraco pequeno, com ruas apertadas, um trânsito caótico e outras coisas também não menos caóticas. Aqui também tem uma coisa que tem em todo lugar: tatuzinhos bons e tatuzinhos que não são bons.

Por aqui tem tatuzinhos que são daqui e amam o buraco, apesar dos problemas. Tem aqui os tatuzinhos que são daqui e não gostam daqui, e às vezes, por esse ou por outros motivos vão embora. Também, tem aqueles que não são daqui, chegam, gostam e ficam. Todos esses falam mal do buraco, claro, ninguém é cego. Mas há um tipo de tatuzinho que vem de outros buracos (uns até bem piores do que esse) e chega aqui para morar e fazer a vida. E faz a vida, se dá bem, mas não gosta daqui. E fala muito mal daqui, inclusive, depreciam bastante o buraco. Outro dia, um desses disse assim:

— Meu sogro ficou feliz quando contei que vou embora desse buraco fedido.

Outro:

— Graças a Deus já me vou desse buraco onde fui discriminado, mal recebido, sofri bullyng. A tatuzada daqui não tem cultura, não valoriza tradições religiosas...

E outro: 

— Deus que me livre daquele buraco! Ali só para ganhar dinheiro e mesmo assim é pouco! Passei muita raiva lá...

Por azar, a prefeita do buraco ficou sabendo das queixas. E resolveu se pronunciar. Os assessores organizaram o evento. Palanque, som, comida, banheiro químico etc. Tudo pronto, a prefeita soltou o discurso:

— Meus queridos tatuzinhos. É com grande consternação que venho vos falar. Fico triste quando alguém fala mal do nosso querido buraco. Mas não deixo de lhes dar razão em alguns aspectos. Precisamos, mesmo, melhorar várias situações por aqui. Peço que se juntem ao governo para fazermos daqui um buraco melhor a cada dia. Que recebam bem os tatuzinhos de fora — apesar de que alguns reclamam com suas barriguinhas e bolsos cheios — sem discriminação, acolham bem, pelo amor de Deus! Vamos também continuar tentando fazer nossa parte, posso garantir, mas vamos todos juntos? — a prefeita parou para respirar e tomar um gole de água. E então, continuou:

— E agora, aos tatuzinhos de fora que reclamam de nós — alguns com razão, outros sem razão e outros, vai saber, né? — digo o seguinte: meus queridos, muito obrigada por terem vindo ocupar seus lugares em nosso humilde buraco e por passarem esse tempo conosco. Foi um prazer recebê-los. Não gostaram? Mas que pena. Desejamos que, para onde forem sejam muito mais felizes. Felicidade total, aliás. Não sabemos onde fica, nem se existe esse lugar perfeito, que provavelmente, nem deve ser um buraco, mas se acharem... parabéns! Que Deus conserve suas preciosas vidas assim (falou isso colocando as mãos postas). Que Deus os livre desse buraco chamado Formiga, meus amigos. No entanto, nós, os tatuzinhos formiguenses, amamos esse buraco! Aqui é para nós, nosso lugar, com todas as deficiências que tem. É nossa casinha, nosso lar, nossa identidade. Não uma fotografia na parede, não uma utopia. Tudo passa por aqui quando temos coração. Mais respeito, meus amigos, é o que pedimos. E aos tatuzinhos daqui, lembramos que, se por acaso passarem a residir em outro buraco, lembrem-se das sábias palavras da D. Martha Medeiros em seu best-seller, Doidas e Santas: “pessoas com vidas interessantes não têm fricote. Elas trocam de cidade. Sentem-se em casa em qualquer lugar. Investem em projetos sem garantia. Interessam-se por gente que é o oposto delas. Pedem demissão sem ter outro emprego em vista. Aceitam um convite para fazer o que nunca fizeram. Estão dispostas a mudar de cor preferida, de prato predileto. Começam do zero inúmeras vezes. Não se assustam com a passagem do tempo. Sobem no palco, tosam o cabelo, fazem loucuras por amor e compram passagens só de ida...”

Pairou um terrível instante de silêncio na praça. Os tatuzinhos estavam de olhos arregalados. Então a transpirada prefeita enxugou o suor da testa, tomou um gole de água e gritou:

— E agora, vamos para a festa, tatuzada! DJ, som na caixa!