Opinião: O inventário

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: O inventário
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




Certo dia olhei-me no espelho demoradamente. Fazia tempo que não me admirava. E, neste dia senti algo inusitado observando aquelas rugas. Algumas velhas, outras mais recentes, que, aliás, nem eu havia notado, mas os outros, sim. Claro que haviam notado. Então, inventariei aquela coleção de sulcos demoradamente.

E com isso, minhas pernas doeram. É que elas também envelheceram. Ao sentir a dor, percebi que não precisaria escrever a minha história, pois ela já estava escrita em minha pele! Pés de galinha, bigode chinês, rugas suecas, sulcos malásios, verdadeiros cânions preservando os anais de mim mesma. Fielmente... Então as rugas são imagens vigorosas para marcar nossa trajetória. Como símbolos.

Não. Não quero mudar o externo. Ali também está registrado através destas marcas, as muitas experiências absurdas, alegrias que nem fazem mais rir, de tão naturais e espontâneas. Estas também, registradas em minha pele nada sensível e que, de tão forte, causam espantamento.

Não posso desculpar-me pelas minhas rugas, minha história está aqui. Estamparia feita com muito esforço.  Aquelas rugas se mexem quando sorrio. Elas se espremem quando choro ou grito, se alteram quando me espanto. O espanto ao testemunhar a alvorada chegar. A melancolia ao testemunhar o ocaso. A dor do parto das minhas decisões difíceis. Dores vincadas a ferro. Debruns e fissuras resultantes de perdas e danos. Marcas também, e muitas, inúmeras, por expressões de alegria verdadeira, genuínas e internas. Aliás, estas, a maioria, graças a Deus.

Não posso desculpar-me pelas minhas rugas. Sei que elas incomodam a muitos, e a mim, também não me satisfazem. Talvez, porque poderia ter sido de outra maneira e assim ter esculpido rugas diferentes, mais positivas e bem acabadas. Mas assim não foi e não há o que discutir. Somente entre mim e eu, duas personagens lutando para se entenderem.

Não posso desculpar-me pelas minhas rugas. Elas seguem. E assim, segue também a minha história. Ela está aqui, viva, latejando. Minha biografia já está escrita. Não está pronta, muito a retirar, muito a acrescentar e melhorar. Livro capa dura, em letras douradas, diagramação a dever, é isso que entrego.

Sinto que mais rugas virão. Estão sendo construídas devagar. Afinal, eu pedi para nascer!