Opinião: O inventor

Ana Pamplona (de Formiga)

Opinião: O inventor
Ana Pamplona é membro do Coletivo Poesia de Rua




— Ô... Ô... Ô... era o som ritmado que Leonel fazia no grande quintal de sua casa.

Deitado sobre o chão de terra, as mãos em concha em torno da boca, direcionava a fileira de formigas cortadeiras que marchavam carregando folhas imensas, muitas vezes maiores e mais pesadas que elas. Ele acreditava que o som que emitia estimulava as operárias a trabalharem de forma mais eficaz. E enquanto ele fazia sua boa ação daquele dia, pensava em como ajudar suas amigas a serem mais produtivas no trabalho. 

Leonel era inventor. Inventava máquinas de caixinhas de fósforo, garrafas de plástico e muitas outras. Mas também, seu forte era inventar mecanismos. Tais como: drenagem de água para passarinhos matarem a sede ou se banharem, manter o quintal bem sortido de argila molhada para os joões-de-barro construírem suas casas, resgatar abelhas ameaçadas e devolvê-las às colmeias, cuidar de bebês-passarinhos que caem dos ninhos e muito mais. 

Em seus oito anos de vida, o menino já havia ajudado várias espécies de bichos do seu quintal a melhorarem de vida. Passava horas e horas por ali observando seus amiguinhos, seus hábitos, as coisas que necessitavam, a fim de que pudesse auxiliá-los em suas vidinhas de bichos. Desde construir poleiros para os seus amigos passarinhos disputarem suas fêmeas, até um trenzinho que levava restos mortais de mosquitos para determinado ponto, a fim de que a natureza transformasse aquilo em fonte de alimentos.

Certa vez, construiu uma cadeira de rodas para a Farofa, sua cadelinha que havia sido atropelada por um carro. Ela perdera as duas patas traseiras e lhe dava muita pena ver a cachorrinha arrastar-se para lá e para cá. Farofa adorou seu novo transporte e Leonel aproveitava para dar uma carona na cadeira dela aos sapos, uns que moravam atrás dos vasos de plantas de sua mãe. Ele acreditava que os sapos se divertiam dando voltas e mais voltas no terreiro nas costas da Farofa. O fato era que todos se divertiam. Essa era a verdade. 

Também gostava de ajudar os bichos a se alimentarem. Às vezes, percebia uma lagartixa à espreita de um mosquito para comê-lo. Então, Leonel capturava o mosquito, empunhava sua lupa, passava cola em suas patas e o colocava próximo ao réptil. Depois vinha um sentimento de culpa por haver sacrificado o inseto. Tentava compensar esse fato salvando mosquitos que ficavam presos nas teias das aranhas. Mas sua mãe sempre lhe advertia:

— Leonel, pare de interferir na vida dos bichos! Eles sabem o que fazer e como fazer para viverem! Não precisam de você!

   Mas Leonel não concordava. Achava que sempre havia algo para fazer a favor dos indefesos animais do seu quintal. E foi isso que, em certa ocasião, levou-o a tentar ajudar um filhote de rolinha. Fazia algumas horas que a mamãe rolinha havia saído do ninho e o bebê estava de fora observando o ambiente. Ainda estava bem menor que sua mãe e tinha a plumagem mais escura. Leonel subiu num banco e pegou o filhote. Este bateu vigorosamente as asas para tentar fugir das mãos infantis, mas o garoto interpretou a reação como “vontade de voar”. Achou que ele queria começar a voar e não estava conseguindo. Então, levantou os braços magros e jogou o filhote com um impulso. Para sua decepção, o animalzinho bateu as asas inutilmente e esborrachou no chão. Leonel arregalou os olhos enquanto ouvia sons assim: — Uhuhuh... Uhuhuh... Uhuhuh... ao mesmo tempo em que sentia fortes bicadas na cabeça. Era o casal de rolinhas lhe castigando por ameaçarem o filho indefeso. 

Leonel pensou o quanto deveria ser difícil ser passarinho. Aprender a voar, fazer a dança do acasalamento para atrair uma fêmea, construir ninhos e casas tão complexas, como a do João-de-Barro, capturar bichos minúsculos e colocar dentro do bico dos filhotes... Puxa-vida... E as formigas? Não deveria ser nada fácil ser formiga. Algumas trabalhavam feito doidas para levarem folhinhas inocentes para o interior do formigueiro, para que a Rainha-Formiga as envolvesse com sua milagrosa saliva e os fungos as fermentassem para que ela pudesse crescer, desenvolver suas asas para voar e acasalar com os machos que morreriam logo depois disso; e a rainha... perder as asas que foram tão difíceis de construir. Pensou nas pobres abelhas que fabricavam os favos da colmeia, colhiam o pólen minúsculo das flores, fabricavam o mel, a geleia da rainha, o própolis que protege a colmeia de todo tipo de germes... Muito difícil...  

“Talvez sua mãe tivesse razão”, pensou ele. “Talvez ele não devesse interferir na natureza. Talvez ele devesse parar de inventar mecanismos para ajudar seus bichos, deixar os passarinhos construírem seus ninhos sozinhos, as lagartixas capturarem suas comidas sozinhas e evitar salvar mosquitos das garras das aranhas... afinal, eles sempre sobreviveram sem a sua ajuda. Mesmo assim, ele espremia os olhos, pensando na vidinha difícil dos bichos... Acho que deve ser mais fácil ser gente grande”, pensou ele massageando a cabeça dolorida pelas bicadas das rolinhas...

Muitos e muitos anos mais tarde, na frente de um monitor, com muitas planilhas de engenharia a organizar, inúmeros boletos a pagar, e diante de infindáveis problemas existenciais e de relacionamentos a resolver, aquele garotinho, já não tão espontâneo, nem tão inocente, se perguntava: “Leonel, o que você deixou de ser quando cresceu?”