Opinião: O marido morreu, e o enteado quer partilha de patrimônio que é só dela
Maria Lucia de Oliveira Andrade (de Formiga/MG)

Quando se casaram, tiveram de fazê-lo sob o regime da separação legal de bens, pois ele tinha 72 anos. É que, quando um dos cônjuges tem mais de 70 anos, a lei impõe isso. Nesse regime, cada um mantém a propriedade exclusiva dos bens que tinha antes do casamento ou que adquiriu durante essa união. Se ficar comprovado que a aquisição de algum dos bens durante o casamento ocorreu com o esforço comum dos dois, aí, sim, esse bem poderá ser partilhado.
Para os dois e para os três filhos dele, essa era uma questão tranquila, pois ela não concorreria a nenhum bem dele, caso ele viesse a falecer antes dela. Ela e ele tinham adquirido seus bens antes do casamento, graças a longos anos de trabalho. Ela, com seus 62 anos, tinha sua própria conta bancária, na qual eram depositados os seus proventos de aposentadoria e a renda do aluguel de duas salas comerciais das quais era proprietária há pelo menos duas décadas.
Depois de dez anos de um casamento harmonioso, ele faleceu. Imersa na tristeza, deixou que o filho mais velho dele cuidasse de todos os trâmites do sepultamento, inclusive do inventário. Ela supôs que não haveria nenhuma dificuldade, visto que a separação legal de bens definia bem a situação: ela não teria participação nos bens deixados pelo falecido, pois nenhum fora adquirido após o casamento.
Porém, teve uma surpresa nada agradável. Veio a saber que, na lista de bens a serem partilhados com os filhos herdeiros, constava a metade do saldo que ela detinha em sua conta bancária na data do falecimento do marido, bem como uma casa que lhe fora doada por uma tia idosa. Essa doação, exclusiva a ela, deu-se um mês depois que se casou.
Ela me relata isso, pedindo, veementemente, que eu mantenha sigilo quanto à nossa conversa. A pior coisa que poderia acontecer-lhe, nesse momento, seria um conflito familiar. Sua relação com os enteados sempre fora pacífica, e seria muito desagradável para ela ter de discutir com eles sobre quem é o dono de quê.
Digo-lhe que o Código de Ética e Disciplina dos advogados é claro quanto ao dever que temos de guardar sigilo dos fatos que chegam a nosso conhecimento no exercício de nossa profissão. Quanto a não querer discutir com os enteados quem é o dono de quê, ela não tem como fugir a isso. Na medida em que eles arrolaram, entre os bens a serem inventariados, a metade do saldo bancário da conta dela e a casa recebida em doação, não será possível ficar em silêncio diante disso.
Pergunto-lhe se tem como comprovar que a quantia constante na conta, na data do falecimento do marido, advinha exclusivamente de proventos de sua aposentadoria e da renda dos aluguéis. Ela diz que sim. Então, será necessário, para evitar que seja prejudicada, requerer ao Juízo que essa quantia seja excluída do montante partilhável. Esse valor pertence apenas a ela; não terá de ser partilhado. Também no que se refere à casa recebida em doação, será preciso contestar sua inclusão no monte partilhável, pois é um bem que só pertence a ela.
Portanto, não há como fugir a essa discussão e a um eventual desgaste com os enteados.
Ela me pergunta: “Se tivesse sido eu a falecer antes do meu marido, quem ficaria com meus bens?” Respondo-lhe que, já que ela não tem filhos, considerando a lei em vigor, seu marido seria seu herdeiro. Ela me dirige um olhar incrédulo. “Mesmo tendo sido nosso casamento realizado sob o regime da separação legal de bens? Quer dizer que eu não herdo nada dele, mas ele herda tudo meu?” Só posso dizer-lhe que é assim mesmo. O fato de ele ter filhos, que são seus herdeiros necessários, impede que ela seja incluída na partilha do patrimônio deixado por ele. Já ela, como não tem herdeiros necessários, se viesse a falecer antes do marido, teria esse marido como herdeiro.
“Mas e se eu quisesse que meus irmãos fossem beneficiados e recebessem meus bens? Tenho certeza de que meu marido compreenderia se isso fosse possível, pois os bens dele seriam suficientes para manter uma vida digna e confortável. ” Respondo-lhe que, para que seus irmãos fossem beneficiados, nessa hipótese de casamento com separação legal de bens e de morte dela anterior à do marido, ela teria de ter deixado um testamento, ou de ter feito doações a eles em vida. Somente assim, os bens dela poderiam ser usufruídos pelos irmãos.
Ela me diz que não sabia disso. Se tivesse falecido antes do marido e existisse a possibilidade de ver do além o que acontece na vida terrena, não gostaria nada de ver os irmãos excluídos da herança. Agradece a Deus por não ter partido antes. Não que se sinta obrigada a deixar seus bens para os irmãos, mas é que sabe da diferença que qualquer quantia faz na vida deles.
Julgo importante comentar com ela que se encontra em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF) essa questão da obrigatoriedade da separação de bens nos casamentos em que um dos cônjuges tem mais de 70 anos. Há um recurso sendo julgado que alega que essa obrigatoriedade desrespeita a autonomia e a dignidade humana, podendo configurar-se como discriminação contra idosos, pois se leva em conta apenas a idade, deixando de observar a capacidade plena da pessoa para exercer todos os atos da vida civil. Segundo os defensores dessa ideia, deveria caber à pessoa decidir pela obrigatoriedade da separação de bens, e não à lei determinar isso devido apenas à idade.
Voltamos ao assunto que a fez vir a mim. Ela me diz que, se não há outra saída, vai contestar a inclusão feita pelos enteados, no patrimônio a ser partilhado, do saldo bancário dela e da casa que lhe foi doada. “A César o que é de César”.
Maria Lucia de Oliveira Andrade
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