Opinião: O palhaço
Rubem Alves (1933-2014)

Faz muitos anos fui professor visitante nos Estados Unidos. Na véspera de minha volta ao Brasil vários dos meus alunos vieram ao meu escritório para se despedir. Veio uma moça ruiva, sardenta, longos cabelos sobre os ombros. Olhou-me em silêncio, sorriu e disse: "Sonhei com você. Sonhei que você era um palhaço..." Sorri de volta. Ela havia me compreendido. Tenho vocação para palhaço.
Em tempos antigos, quando os reis se reuniam com seus ministros graves e sérios, havia o ministro do riso, o bufão, também chamado bobo da corte. Esse ministro tinha prerrogativas especiais. Ele tinha permissão para fazer piadas do próprio rei. Conta-se que numa reunião do ministério de um reino distante, o rei dava explicações esfarrapadas sobre uma besteira que havia feito, chegando mesmo a invocar urucubaca. Os ministros concordavam graves e sérios com medo de serem demitidos. Menos o bobo, que interrompeu a arenga do rei e disse:
"Majestade, há explicações que são piores que uma ofensa". O rei ficou danado. "Você tem até o fim do dia para explicar-se, sob pena de passar uma semana no calabouço...". O bobo deu uma risadinha e saiu da sala. Ao fim do dia, dadas as explicações, terminada a reunião, o rei se dirigia sozinho para os seus aposentos, mergulhado em seus pensamentos, caminhando por corredores desertos, cheios de colunas. Atrás de uma dessas colunas o bobo estava à espera de sua caça. Quando o rei passou, ele saiu detrás da coluna que o escondia e agarrou com força as majestáticas nádegas murchas. O rei deu um berro enfurecido e o bobo disse: "Perdão Majestade, eu pensei que fosse a rainha..." Aí o rei teve "satori".
Mora em mim um palhaço. E estou em boa companhia. Nietzsche amava o seu palhaço. No Ecce Homo ele escreveu: "Que eu seja exilado de toda verdade... Sou somente um bufão, somente um poeta..."
É preciso distinguir um bufão de um humorista. Um humorista é um especialista na produção do riso. Riso pelo riso. Ele é bom nas piadas. O bufão, ao contrário, produz o riso para mostrar as cuecas samba canção debaixo da sobrecasaca.
"Ridendo dicere severum" - rindo, dizer as coisas sérias - assim ele descreveu o seu estilo. E acrescentou: "Não é com o ódio que se mata, mas com o riso... De toda verdade que não é acompanhada por um riso, pelo menos poderíamos dizer que é falsa".
Octávio Paz mistura a vocação do palhaço com a vocação do sábio: "Os verdadeiros sábios não têm outra missão que aquela de nos fazer rir por meio de seus pensamentos e de nos fazer pensar por meio de seus chistes".
Leczek Kolakowski, filósofo polonês, escreveu um ensaio com o nome "O sacerdote e o bufão". Segundo ele, em toda sociedade há dois tipos de pessoas: os sacerdotes e os bufões. Os sacerdotes são sérios, levam especialmente a sério eles mesmos, suas palavras sempre usam casacas e tudo que é tocado por elas fica sagrado. Os bufões, ao contrário, são destruidores de ídolos e o fazem por meio do riso.
A ruiva estava certa. Dentro de mim mora um palhaço. E é em nome da minha vocação para palhaço que desejo sugerir ao governo, tão sério, a criação de um novo ministério, o "Ministério do Bobo da Corte". A missão do Bobo da Corte será a de andar pelos palácios, aparecer em reuniões secretas sem ter sido convidado, participar das reuniões das câmaras, e rir muito alto para que todos fiquem sabendo dos ridículos que acontecem em secreto nos recintos sacerdotais.
Quando o Bobo da Corte ri, as baratas correm...