Opinião: O sermão das árvores

Rubem Alves (1933-2014)

Opinião: O sermão das árvores
‘O Pergaminho’ publica crônicas de Rubem Alves por ter recebido autorização escrita do próprio autor




Relata-se que São Francisco - a quem muito amo - pregava aos peixes e às aves. Se a lenda é verdadeira imagino que os peixes e as aves, ouvindo a pregação do santo, riam e sorriam discretamente para não ofendê-lo. E isso porque não se pode pregar a seres perfeitos. Prega-se a seres imperfeitos para que eles se tornem perfeitos. Acontece que peixes e aves são perfeitos, são felizes naquilo que são. Peixes não querem ser aves. Aves não querem ser peixes. Mangueira não pensam jabuticabas. Jabuticabeiras não pensam mangas. Fico pasmo, olhando uma jabuticabeira florida no Dali. Pobrezinha, teve galhos cortados, ficou espremida entre paredes. Mas ela tudo ignora. Está coberta de flores brancas. É como se tivesse caído neve. As flores têm aquele delicioso perfume de infância e pés descalços. As abelhas, atraídas pelo perfume, vêm e zumbem, zumbem...Assim é: cada bicho, cada planta, está contente com o que é. São felizes no que são. Feuerbach, filósofo-poeta sensível, observou sobre a desconhecida psicologia das plantas: " Se as plantas tivessem olhos, gosto e capacidade de julgar, cada planta diria que a sua flor é a mais bonita". Esse não é o nosso caso. Somos os únicos seres que não estão contentes com o que são. Queremos ser diferentes. Por isso estamos infelizes e doentes. "Ah, como os mais simples dos homens / São doentes e confusos e estúpidos / Ao pé da clara simplicidade/ E saúde em existir / Das árvores e das plantas!", dizia Alberto Caeiro. Assim, o certo não é nós. Confusos e estúpidos, pregarmos às criaturas. O certo é elas, felizes, preguem a nós. As criaturas falam. O salmista olhava para os céus e percebia que pelos espaços vazios se ouvia a pregação sem linguagem e sem fala das estrelas (Salmo 19). Olhava, fechava a boca e escutava. Mas nós, cuja loucura está em nos considerarmos superiores, achamos que podemos pregar e ensinar. Parte da nossa estupidez é a incontinência verbal, a constante ejaculação de palavras - quando a verdadeira sabedoria seria fazer silêncio, parar os pensamentos, para ouvir a pregação das estrelas, dos peixes, das aves, das plantas.

Jesus dizia aos perturbados pelas ansiedades da vida que eles deviam olhar para as flores a fim de aprender delas tranqüilidade. O salmista (salmo 1) pregava aos homens falando de um ideal de vida em que somos como "a árvore plantada junto a ribeiros de águas". Regatos e árvores nos ensinam sabedoria.

Por isso, continua em mim suspeita de que as árvores são uma forma mais evoluida de vida que a nossa. Me contestarão dizendo que somos superiores porque pensamos e as árvores não. Pergunto se a capacidade de pensar é sinal de superioridade. O pensamento não surge, precisamente, da nossa doença? Ou como sintoma dela ou como tentativa de cura? Caeiro dizia que "pensar é estar doente dos olhos". Pensamos porque não estamos felizes com o que somos. Quando estou feliz meus olhos vêem a árvore e descansam nela. Não penso outras coisas. Eu e a árvore somos um. Quando estou doente meus olhos vêem a árvore  mas não descansam nela. Penso. Eu corpo, no pensamento, vai para um outro lugar. Pensamos porque não estamos felizes onde estamos. Daí a nossa agitação, tão bem descrita numa palavra inglesa que não pode ser traduzida: "restlessness": o estado em que estamos permanentemente sem descanso. Inclusive eu, que penso esses pensamentos: penso para ver se descubro uma forma de ficar simples e calmo como as árvores.

Gosto de caminhar. Caminho olhando para cima e para os lados. Acho estranhas as pessoas que caminham olhando para o chão. Compreendo. Para elas não faz diferença. O pensamento delas não está colado ao corpo. Se estivesse, elas estariam olhando para os lados e para cima, colado às árvores, aos pássaros, ao céu. Infelizes, o pensamento caminha por outros lugares. Por isso é indiferente que olhem para o chão ou para as árvores.

Olho para cima e para os lados para ver as árvores. Tento ouvir a sua silenciosa pregação. Se pregam, é porque pensam. Mas seus pensamentos são diferentes dos nossos. Elas pensam da mesma forma como produzem brotos e flores. Não pensam pensamentos da cabeça, como nós. As árvores não têm cabeça. Não precisam ter cabeça. Elas pensam com o corpo: raízes, tronco, galhos, folhas, flores, frutos. Pensam sempre os pensamentos que devem ser pensados, isto é, pensamentos que têm a ver com a vida. Agora, depois da chuva, as tipuanas e outras árvores estão cobertas de brotos novos. Os brotos novos são seus pensamentos alegres, pensamentos que as árvores devem ter, quando a primavera se aproxima. Os ipês têm outros pensamentos. Eles não são iguais às tipuanas. Estão floridos. Faz duas semanas, eram os ipês amarelos. Agora, os ipês rosa e brancos. Floriram não por felicidade mas por medo, Floriram por causa da seca. Floriram por medo de morrer e trataram de ejacular sementes para que, no evento de sua morte, suas sementes estivessem espalhadas pelo mundo. Os ciprestes italianos têm fantasias teológicas: afinam-se e querem tocar os céus. Os "chapéu-de-sol" - que alguns chamam de amendoeiras, ao contrário, são seres deste mundo. Estendem seus galhos na horizontal. Os paus ferro, livres de cascas velhas enrugadas, exibem uma pela lisa e branca onde pessoas malvadas gravam, a canivete, seus nomes. Passo nelas a minha mão porque é gostoso sentir sua lisura.

As árvores jovens têm a sua beleza. Mas, sendo jovens, não têm estórias para contar. Não se pode assentar à sua sombra, suas copas oferecem pouco lugar para os pássaros e seus galhos não são fortes bastante para que neles se amarrem balanços. "Olhe estas velhas árvores, / mais belas do que as árvores novas, mais amigas ./ Tanto mais belas quanto mais antigas..." - dizia Bilac. As árvores são amigas. Estão sempre fielmente no mesmo lugar, à espera. E se não comparecermos, elas continuarão lá, do mesmo jeito. Sem nada dizer. Às vezes me pergunto se elas, nas noites de tempestade, não sentem medo. Basta olhar para elas com a cabeça livre de pensamentos: nossas tempestades deixam de amedrontar. As árvores sabem que a única razão da sua vida é viver. Vivem para viver. Viver é bom. Raízes mergulhadas na terra, não fazem planos de viagem. Estão felizes onde estão. Enfrentam seca e chuva, noite e dia, chuva e calor, com silenciosa tranquilidade, sem acusar, sem lamentar. E morrem também tranquilas, sem medo. Ah! Como as pessoas seriam mais belas e felizes se fossem como as árvores. É possível que os estóicos e Spinoza tenham se tornado filósofos tomando lições com as árvores.

Olhando para as árvores, tive por um momento a idéia de que Deus é uma árvore à cuja sombra nós, crianças, brincamos e descansamos. Pura generosidade sem memória.

Acho que o verdadeiro, sobre São Francisco, não é que ele tenha pregado aos peixes e pássaros. A verdade é que ele ouviu o sermão das árvores. Por isso ficou tão manso, tão tranquilo. Ele tinha a beleza das árvores. Estava reconciliado com a vida. Então os pássaros fizeram ninhos nos seus galhos e os peixes comeram dos seus frutos que caiam na água...

"Sejamos simples e calmos / Como os regatos e as árvores, / E Deus amar-nos-á fazendo de nós / Belos como as árvores e os regatos, / E dar-nos-á verdor na sua primavera, / E um rio aonde ir ter quando acabemos!... (Alberto Caeiro).