Opinião: Plenitude e vingança
Ana Pamplona (de Formiga)

Casados há aproximadamente vinte anos, Zé e Daisy conheceram-se ainda nos primeiros anos de escola. Foram colegas e costumavam dizer que desde o início já se amavam. Depois da formatura no fundamental, ela mudou de cidade com a família permanecendo fora por dois anos. Quando voltou, ele estava iniciando o último ano do ensino médio e ela havia parado de estudar.
Encontraram-se e aproximaram-se novamente, agora, por uma intensa atração física. Engataram um namoro e daí a casarem-se foi um pulo, devido a uma gravidez precoce. Naquela época, casar grávida não era o modelo padrão esperado para uma mocinha. Tudo precoce e corrido, como era de se esperar. As famílias de ambos não se opuseram à união, mas havia uma preocupação no ar e isso incomodava os pombinhos. Diziam: “Nós nos amamos desde crianças, é amor eterno! ” Casaram-se no civil e no religioso rapidamente, sem planejamento e sem pompas. Terno e vestido de noiva emprestados, festa improvisada, bombons de última hora. Mas nada importava para eles. Só o que interessava era estarem juntos, construir a vida e receber o novo integrante da família. Velhos clichês, novos problemas.
No começo, aquela relação esteve o mais próximo do que se poderia chamar de casamento, embora atípico. Eram românticos. Ambos muito jovens e imaturos, beijavam-se ao acordar, havia uma boa comunicação e entendimento mútuo. Ele precisou deixar a escola para trabalhar e sustentar a nova família, enquanto ela tentava fazer o papel de ser “do lar”. Ele trazia brioches recheados de goiabada com queijo e ela tentava fazer bolo espera-marido para ele.
Nasce o filhinho. Normal, como todos os recém-nascidos: cólicas, sono intermitente, alergias, nariz entupido, febre, assaduras, infecção urinária etc. As noites gostosas entremeadas por sexo, carinhos e troca de elogios foram substituídas por noites mal dormidas, impaciência, cansaço, falta de sexo. Apesar disso, vieram mais dois filhos.
Contra tudo o que eles apostaram, começou uma relação de cobranças, críticas, incompreensão e cumplicidade zero. Zé e Daisy, cada vez mais distantes de serem um casal, foram aos poucos se tornando agressivos. Qualquer episódio era motivo para brigas e disputas. A qualidade do casamento foi a cada dia deteriorando-se de tal forma, que os dois protagonistas começaram a se fazer muito mal. A cada atitude de um, o outro se vingava. Pequenas traições e flertes fora de casa. Às vezes, Dayse cozinhava só para si, “esquecendo-se” de Zé, ou lavava somente suas roupas, esquecendo das roupas do Zé. Às vezes, Dayse pedia algo para Zé e ele “esquecia” também. Certa vez ela pediu que a buscasse no cabelereiro e ele a “esqueceu” de propósito no salão.
Certo dia, depois de uma grave contenda entre eles, num acesso de raiva, Zé, aproveitando-se de uma pequena viagem de Dayse, queimou todos os seus livros; que não eram poucos. Quando a esposa descobriu a atitude do marido, teve um surto de fúria e jogou a sua imagem de Nossa Senhora Aparecida (com seus colossais noventa centímetros de altura) de cima da varanda do segundo andar. Deu briga. E feia.
Insultos e agressões trocados, Dayse chegou no seu limite. E para que aquela relação não acabasse em crime, pediu o divórcio. Há muito tempo vinha cantando essa bola e Zé se esquivando. Inclusive, esta conversa invariavelmente, acabava em briga feia. Mas aquela vez seria a última, segundo a mulher.
Não foi. O divórcio precisou ser litigioso e o homem jogou sujo com a esposa. Fez uma tramoia e a lesou na divisão do patrimônio. Dayse havia tomado um grande prejuízo no final das contas. Ficara sem nada. Precisou recomeçar a vida de forma dura, mesmo com a ajuda dos filhos.
Nas inúmeras noites que passou sem dormir, ela pensou e repensou em como continuar se vingando do ex-marido. Criava violentas conversas mentais, nutria sentimentos de ódio e revolta que a consumiam por dentro e por fora. Era visível sua judiada aparência. Por outro lado, Zé encontrava-se aparentemente pleno por ter feito a ex-mulher comer o “pão que o diabo amassou”. E num dia qualquer de sua vida, Dayse teve uma indigestão com esse pão. Foi parar no pronto socorro por causa de dores atrozes no estômago. Aguardou pouco tempo pelo atendimento médico. O doutor entrou na sala, cumprimentou-a com simpatia e leu a ficha de pré-consulta. Daí a pouco lhe disse:
— Hum... Dayse, o diagnóstico para o seu caso é muito clássico: “gastrite vingacional”. Esta doença é causada por um desejo de vingança resultante de um sentimento avassalador de impotência e frustração por achar que foi prejudicada injustamente. Vingança é o nome do “vírus” causador da sua doença. Um sentimento nefasto que tem minado sua resistência e provocado um aumento nos níveis de ácido estomacal. Vou fazer a receita já, para você se curar.
Enquanto Dayse fazia uma cara de espanto diante da consulta inusitada, o doutor escreveu no bloco receituário: “Para Dayse Assunção e Silva, uso oral e mental: 2 doses/dia de perdão; 2 doses/dia de auto amor; 1 dose de um novo sentido para a vida. Uso contínuo. ” Assinou, carimbou, entregou a prescrição para a paciente e despediu-se dela, desejando-lhe muita fé e esforço para o tratamento.
Ainda não refeita do acontecimento, Dayse vê entrar outro médico dizendo:
— Bom dia. O que você está sentindo?
Terminado o atendimento, ao sair, ela reparou numa foto pendurada na galeria que homenageava os fundadores já falecidos daquele Hospital: era a foto do primeiro médico que a atendeu.