Opinião: Seja os meus olhos
Ana Pamplona (de Formiga)

— Ô friagem que é essa terra! — exclamou Gaspar esfregando as mãos com vigor para esquentá-las.
Madrugada gelada de junho em Formiga. Veterinário recém formado, acordara bem cedo naquele dia para atender ao chamado urgente de um fazendeiro. Uma de suas vacas leiteiras estava com problemas no parto. Gaspar dirigiu-se à fazendo do Gregório o mais rápido que pôde.
Lá chegando, tudo correu nos conformes. Depois de realizar as difíceis manobras que o parto exigiu, nasceu um bezerro forte e a linda vaca Princesa ficou bem.
Gaspar já se organizava para partir, quando foi abordado por uma linda moça. Chamava a atenção pela delicada beleza. Pele alva, cabelos claros, quase loiros, e os olhos, de um azul, mais azul do que o céu da sua cidade. Eles brilhavam mesmo por trás das grossas lentes dos óculos dela. O motivo da abordagem era o pagamento dos honorários dele.
— Dr. Gaspar, meu pai me mandou entregar-lhe o pagamento do serviço. — disse a moça estendendo as notas para ele.
Confuso, não conseguia tirar os olhos dela. Ficou sem ação, sem saber o que dizer. Enquanto pegava o dinheiro, ela lhe disse com um tom de voz fingindo decepção:
— Você não está me reconhecendo? Sou a Olga, filha do Gregório. Fomos colegas na escola — disse ela.
Gaspar assombrou-se. Agora que ela havia comentado, ele se lembrava sim. E ficou mais espantado ainda com a natureza. Como uma menina desajeitada e feiazinha poderia ter se transformado naquela lindeza? Lembrou-se das larvas se metamorfoseando em pupas horríveis e depois renascendo como belíssimas borboletas. Era o caso. Da garotinha tímida e feiosa só haviam sobrado os óculos. E disse:
— Ah, claro, Olga... claro que me lembro sim. — disse ele gaguejando.
Ela perguntou sobre a vaca, que por sinal era dela, ele respondeu que estava ótima e iria produzir muito leite. A conversa entre eles engatou, até que ela o convidou para a festa que aconteceria ali na roça, no sábado. Festa junina, em prol da Igreja que atendia as fazendas daquela comunidade rural. Ele aceitou de bom grado, feliz por tornar a vê-la. Jamais acreditou em paixão à primeira vista, mas, naquele dia, passou a acreditar. Enfeitiçara-se por aquela moça. Prometeu trazer uma prenda para o leilão e isso foi bom, pois ganhou um sorriso espetacular daquela, que, decerto, seria sua esposa.
O sábado demorou um século para chegar, e foi uma decepção total: Olga estava acompanhada do namorado. Gaspar não se conformava. Em dado momento, conseguiu aproximar-se dela. A moça perguntou-lhe se ele estava apreciando a festa. Olhando firme em seus olhos, Gaspar segurou as delicadas mãos e confessou sem rodeios:
— Não! Estou detestando! Porque você tem um namorado e eu vim aqui só para estar com você, para refrescar meus ouvidos com sua voz doce, para sentir estas mãos de veludo nas minhas e dizer que nunca mais quero separar-me de você!
Olga ficou paralisada. Depois de uma declaração de amor daquelas só confirmou o que era apenas suspeita: que a paixão platônica que nutria por aquele menino nos tempos de colégio, não tinha morrido e que havia sido despertada naquele mesmo dia em que ele fora à fazenda. Ela confessou isso a ele, aconchegando-se no peito do amado. Os dois se abraçaram com aquela ternura dos filmes românticos, por alguns minutos, até que Olga foi retirada bruscamente dos braços de Gaspar pelo namorado fora de controle. Armou-se a confusão. Houve discussão, os dois se engalfinharam, a garota chorou, os oponentes foram separados e quando a situação foi controlada, cada um foi para o seu lado com a raiva que lhe competia.
Ao chegar em casa, seus pais e sua madrinha já sabiam do ocorrido. “Notícia ruim corre”, disseram eles. Levou bronca do pai e um abraço da mãe, a qual lhe apalpou o corpo para checar se havia ferimentos. Inquirido sobre a briga, ele descreveu o acontecido e disse que ia se casar com a Olga. A paixão era recíproca. Ao que a madrinha redarguiu:
— Gaspar, veja bem se você quer mesmo namorar e casar com a Olga, porque ela tem um problema sério na vista.
— Madrinha, sou veterinário, vivo receitando para bichos, mas pode acreditar: pra essa paixão não tem remédio! Vai dar casamento...
Dito e feito: deu. Casaram-se, a Olga e o Gaspar. O tempo passou, a vida correu, vieram os filhos, as dificuldades, as ocorrências boas... e o casal continuava apaixonado.
Depois de alguns anos, Gaspar sofreu um grave acidente ao atender um animal de grande porte, fato que lhe comprometeu o nervo ótico. Foi perdendo a visão, a despeito dos tratamentos. Precisou aposentar-se mais cedo. Olga então, tornou-se os seus olhos. Guiava-o por todos os caminhos, preparava-lhe tudo que necessitava, levava-o no carro onde precisasse, sussurrava-lhe as cenas ao ouvido, cantava para ele.
Certa noite, os dois estavam na varanda da casa deles e Olga descrevia-lhe a noite. “Hoje é lua nova, meu amor, e há tantas estrelas, que parecem não estar cabendo no céu”, disse ela. Sem saber o porquê, Gaspar lembrou-se da observação que a madrinha lhe fizera naquela noite da briga. E, sinceramente, esperou que ela estivesse assistindo aquela cena.